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As Aventuras De João Cabelo De Fogo

 
O mundo, para alguns, pode parecer pequeno. Mas não é. Era isso o que pensava João Cabelo de Fogo, nome pelo qual era conhecido por toda aquela cidadezinha do interior das Minas Gerais. João, desde pequeno, queria desbravar o mundo e se lamentava de não ter vivido em outra época, já que a sua não tinha mais nada para se desbravar. Morria de inveja do corajosíssimo Fernão Dias e do famoso e implacável Napoleão. Do grande rei macedônico, Alexandre, O Grande, não podia nem ouvir falar o nome. Ele sentia que aquela pequenina cidade não era o seu destino. O mundo inteiro era seu. Bastava apenas percorre- lo para lhe violar os seus domínios e coragem para enfrentá-lo. E isso ele tinha de sobejo. Era um apaixonado por façanhas alheias, já que não tinha as próprias. Ele já tinha seus cinqüenta anos. Os olhos eram de expressões esquisitas e enormes, em desnível brusco com a boca pequena e com queixo afunilado. A barba sempre a fazer. Os fios de cabelos avermelhados (daí o seu apelido) alternados com os fios prateados, trazidos na altura dos ombros. Além de ser extremamente delgado, a tanto, que os amigos mais íntimos o chamavam de "bambu em pé", apelido carinhoso herdado da infância. Apesar de ser um caboclo da roça, João era muito dedicado aos estudos. Adorava a ler, esse foi o seu mal e, o início de nossa história.
Um dia lendo as fascinantes aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho pança, ele ficou fascinado deveras.
O Ano era já o de 2004 e ele estava completamente apaixonado pelo protagonista da imaginação de Cervantes, a tal ponto de se tornar uma fixação e, não meu amigo que
lê, nunca ser fixo a algo ou a alguém. Pode ser muito perigoso. E, parece que o nosso Cabelo de Fogo não estava ciente disso.
João Cabelo de Fogo tinha um pangaré que atendia pelo nome de Cansado, por que sempre se encontrava de cabeça para baixo. Não era possível que João Cabelo de Fogo ia se meter a ser um novo Dom Quixote! Sim, era exatamente o que ia se arquitetando naquela mente boa e doentia. Todos os dias quando acordava, passava pela sua cabeça ser um cavaleiro andante. A ideia ia e vinha da forma como as vagas marinhas fenecem na costa arenosa. Entretanto a maré subiu. As vagas se tornaram maiores, mais violentas... Até que resolveram adentrar aquele fértil continente. Mas onde ele iria arrumar uma armadura? Procurou em casas de relíquias, foi a museus, colecionadores e nada. Tinha que encontrar uma solução. Foi de onde ele tanto gostava que lhe veio a ideia: Dos livros.
Estudou minuciosamente as dimensões de uma autêntica armadura. Notou a diferença do modelo inglês da do francês. Optou pelo mais original: Seguiu os padrões espanhóis. Foi num artista plástico, amigo seu, pessoa muito conhecida no país e até no exterior, especialista em formas geométricas com o aço, que fazia esculturas maravilhosas, e lhe deu o projeto. O que despertou no velho amigo a inevitável curiosidade a respeito do caso. Ele, João, cordialmente, disse que outro velho amigo de ambos, ator, cujo nome não nos importa, estava representando a era medieval no teatro e que era para ele. O amigo, artista plástico, aceitou a encomenda e a mentirinha dizendo que em uma semana estava pronta a tal armadura. Para João seria até melhor, pois ainda carecia de arrumar uma bela lança e um fiel escudeiro. A lança foi mais fácil. Escolheu as dimensões e encomendou ao torneiro mecânico mais próximo. Já o escudeiro, fiel, nos dias de hoje, seria uma tarefa mais árdua.
No prazo de uma semana, com pontualidade britânica, estava pronta a armadura. A lança e o pangaré também.
Coitado desse pobre animal! Só o peso da sela já lhe causou um desconforto terrível! Já havia muito tempo que ele não sentia o peso de toda aquela parafernália necessária para a equitação. Tanto que a coluna vertebral do pangaré até se desnivelara.
Quando o nosso novo Dom de La Mancha pegou na armadura pela primeira vez, o tempo foi se retrocedendo numa velocidade incrível. A paisagem ao seu redor foi se modificando rapidamente. Sua cabeça girava como se estivesse ébria. Seu velho pangaré, que era de uma cor clara, quase um bege, começou a se robustecer a tal ponto, que ficou irreconhecível: Se transformara num enorme corcel escarlate, repleto de músculos, todos muito bem delineados; As ruas e calçadas foram se transmutando em estradas de terra e as colinas em gigantescos castelos; Os automóveis que, por ventura, passavam por ali foram tomando as formas de terríveis dragões escamosos; As mocinhas, que passavam pela rua normalmente, se modificaram em lindas donzelas de longos e adornados vestidos. Logo que ele pôs o elmo na sua cabeça, esse mundo que se criou naquela doentia mente se tornou absoluto. Aquele outro universo onde vivera toda a sua vida se desmanchara igual à tinta em contato com o solvente.
O pior aconteceu! Montou no seu cansado "cavalo", que agora era chamado de Falcão, nome que lhe agradava muito pela expressão forte, e saiu pelas ruas da cidade da mesma forma que Dom Quixote há quase quinhentos anos atrás. Na felicidade sua, desdenhou o cavalo de Átila e fez pouco caso de Bucéfalo.
No centro da avenida principal se via aquele cavaleiro desfilar, disputando lugar com os automóveis que buzinavam sem parar, assustados com aquela novidade. João olhava admirado para aqueles dragões que, apesar de velozes e barulhentos, eram completamente inofensivos. Como poderia atacá-los? Não admitia covardia. Mesmo sendo com os dragões, que também são criaturas divinas. Assim pensava João no dorso do animal sofrido, que mesmo com o pouco peso do dono, lhe arquearam ainda mais as espinhas. Todas as pessoas presentes deixaram os seus afazeres e ficaram ali, paradas em cima do meio-fio a observar toda aquela alegoria.
Ninguém nunca poderia imaginar que era João Cabelo de Fogo que se metamorfoseara em Dom Quixote de La Mancha. Ele se sentia realmente feliz no interior daquela roupa de aço suportando um calor de 35 graus sem se deixar abater. Teve, no primeiro momento, uma certa dificuldade na respiração. O que teve fácil solução ao levantar-se a viseira do elmo.
Era de espantar ver aquele homem magérrimo, em uma armadura caseira, montado num pangaré que não parava de abanar as orelhas para tormento de uma multidão de pequeninos mosquitinhos que mais pareciam uma nuvenzinha cinza em torno da cabeçona do nosso pobre animal. Era o homem no topo do mundo, no auge da glória e do reconhecimento, pois o povo se organizou naturalmente, a moda dos desfiles alegóricos, o que o dava a impressão de que realmente todos o admiravam e o veneravam. No regozijo seu, chegou a cerrar os olhos, num prazer torpe e instantâneo. Finalmente chegara a sua vez. Lembrou das façanhas de Alexandre e Júlio César. Agora só faltava o mundo e as inesquecíveis batalhas, que não demorariam, e que o imortalizaria nos anais da História Universal.
No tropear do pangaré viu, finalmente, um adversário a sua altura: Era um enorme gigante de pelo menos duzentos olhos, todos de um brilho ofuscante que lhe machucavam os seus. Sentiu um frio na espinha: Era o medo. Porém foi só por um instante. Não sentiu vergonha de senti-lo. Achava o medo um instinto bom, necessário, muito natural e extremamente precioso, responsável pela permanência das espécies menos ou mais favorecidas na terra até hoje e, tão logo ele se desfazia daquela expressão de terror, já estava estampada naquela face enigmática uma outra: A da coragem. As rugas da testa se estagnaram na mesma; as sobrancelhas realçaram um olhar vidrado, com ponto fixo exclusivo no eminente inimigo; Nem um movimento das pálpebras. Somente um ritmo frenético ocasionado pelas batidas do coração. Os dentes se apertaram e a lança numa posição perpendicular ao enorme gigante de olhos espelhados; Os nervos se contraíram em todas as suas ramificações. João estava pronto para o ataque.
O enorme gigante nada mais era que o prédio da central elétrica da cidade, com suas janelas espelhadas que refletiam o azul do dia. Nosso novo Dom Quixote, que estava
em posição de combate, se persignou, fez algumas genuflexões e deu com as esporas afiadíssimas na virilha do nosso coitado Cansado, que não tinha nada a ver com aquela loucura toda, o que fez com que o pobre animal, além da dor, tomasse um grande susto e esse último o motivo pelo qual o bicho saiu em disparada pela avenida numa velocidade surpreendente, em se tratando de um pangaré com mais de vinte e cinco anos de idade. O bicho doido pelas ruas , dava às mesma um novo som: O das ferradura no asfalto e , tão logo se aproximaram do gigante, digo, do prédio, as mesmas ferraduras traíram os dois: Cavaleiro e pangaré. Sendo elas de ferro, não tinham a aderência perfeita ao liso asfalto do centro. Escorregaram. Primeiro foram deslizando pelo asfalto afora. Ele por cima e o pangaré por baixo. Depois foram esfolando um do lado do outro e, por fim, os dois dentro da loja de vestidos de noivas que era situada no primeiro andar do prédio. Ele embaixo e pangaré por cima.
Na cidade não podia ter tido coisa melhor. Não se tinha entretenimento nenhum por ali e aquilo era motivo suficiente para que a multidão de pessoas se formasse no local dos acontecimentos. Aquela cena do cavalo de véu e grinalda por cima do cavaleiro foi logo eternizada pelas lentes de um fotógrafo amador que, por acaso, estava ali naquele momento e se destacou na primeira página do jornalzinho local. A foto mesmo sendo em preto e branco e mesmo sendo aparentemente cômica, não era. Era a cena de mais um desiludido desse mundo de meu Deus. E, desiludido, é a palavra para poder expressar o que se passava com João Cabelo de Fogo naquela cena ridícula. De primeiro as pessoas se preocuparam. Perguntaram-no se estava tudo bem, se não tinha machucado. Quando notaram que João, mesmo todo ralado, estava bem, não puderam segurar o riso que estava batendo nos dentes para fora sair. Aqueles risos tinham poderes mágicos e não sabiam. A cada gargalhada, João sentia o mundo real querendo voltar e o gigante a sua frente foi lentamente se transformando em prédio novamente. Os ferimentos mais profundos estavam ocultos na alma de João.
Depois da cena, João Cabelo de Fogo foi para casa. Afinal, estava todo moído, todo quebrado e arranhado. Era de dá dó ver o pobre homem andando de cabeça baixa. Em uma mão segurava o cabreço, arrastando o pangaré que estava com o pêlo todo arrepiado. Na outra o elmo, que tinha se rachado bem no meio do crânio. Ao fundo a noite que já ia surgindo e trazia consigo uma fraca neblina, por onde os curiosos puderam ver, pela última vez, aquele vulto estranho se perder na escuridão, com os passos lentos, mancando.


Gyl Ferrys

 
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