... Seria assim:
É uma longa, extensa de não acabar mais, tarde de verão... Nesta cidadezinha cujas ruas serpenteiam pelas encostas das serras, o casarão da Santa Casa, nem é tão velho... construído nos começos do século XX, fica numa curva, no ponto mais alto de uma das ruas. Sempre admirei a construção... portas e janelas pintadas de azul, jardim antigo na frente onde se cultivam arbustos hoje tidos como fora de moda, e dois manacás, estes eternamente belos e delicados, em cada lado da imponente porta de entrada.
E foi aqui, nesta acolhedora cidade paulista do velho ciclo do café, que o desfecho se deu... tentarei ser rápido, mesmo que agora, o tempo para mim não conte mais...
Internado há vários dias, agora, eu só podia admirar o interior do prédio da Santa Casa... sentia saudades de admirá-lo de longe, quando eu ainda estava na força dos meus dias, e passava pela rua, bem devagar. Mas agora, dos manacás só perfume ao longe, ou no máximo, de algumas florzinhas brancas e azuis que a enfermeira bondosa me trazia num copo de água.
Estou só, num amplo quarto, com uma janela enorme que dá para a encosta da serra em frente, onde posso ver o gado pastar mansamente, sem pressa... e tem pressa quem não sabe que vai morrer?
São 18 horas... hora do ângelus. Da igreja vêm os acordes da Ave-Maria que me transportam, num instante, para os dias luminosos da longínqua infância, vivida lá em Araguari-MG. Agora, na minha casa, era a hora da tradicional sopa de macarrão, batatinha e pedacinhos de carne.
Aqui também é hora da sopa, mas de mandioquinha-salsa, como dizem aqui em São Paulo, ou batata-aipo, como se dizia na minha antiga Araguari. Entra a enfermeira. Traz-me uma tigela de sopa, algumas fatias de pão, e outro copo de água com flores do manacá, para substituir o que está no criado-mudo desde ontem.
Essa doce criatura desses meus dias, é tão terna, tão suave, e de tão silenciosa, parece flutuar... cuidadosamente, ela troca o copo de flores que está no criado mudo da esquerda, depois, dá a volta, vem ao lado direito da cama, põe um forrinho branco no criado, ajeita o pratinho com o pão e a tigela de sopa. Em seguida, coloca o guardanapo de pano em volta do meu pescoço, dá-me um beijo na testa, senta-se na beirada cama, e prepara-se para me dar a sopa. Quando ela se volta e destampa a tigela, o quarto inunda-se com o aroma da sopa de batata-aipo, temperada com galhinhos de salsa...
Com a colher cheia no ar, ela nota minha ansiedade; para, olha os meus olhos, interroga-me... e já sabe:
— Ah, eu sei... a janela; você gosta de jantar olhando a serra...
Ela se levanta, abre as duas folhas da janela, sorri para mim, e eu lhe sorrio em retribuição. Ela recomeça a me servir. Nota que estou agitado, e tenta me acalmar, pousa a mão suave sobre o meu peito.
Tomo uma colher de sopa... ela sorri, satisfeita.
— Mais uma, vamos... você precisa!
Na terceira colher, eu cerro os olhos... ela me toca, diz alguma coisa, mas eu não a ouço mais. E mal vejo o bando de aves que passou no campo de minha visão, voando rumo à serra... levando-me para longe de tudo.
No corredor, silêncio total. Ouviu-se um lamento, um choro sentido. Mas para mim, nada mais conta, para mim, o tempo parou para sempre.
___________
[Desterro, 31 de dezembro de 2011]