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Rita tinha vinte e quatro anos, cabelo muito escuro, à garçonette, um olhar rápido acima das sardas e uma cintura de miúda. Desistiu do curso de letras no segundo ano, precisamente quando foi trabalhar como secretária num laboratório de análises clínicas. Há dois anos que não estava com um homem. Há dois anos que, reflexiva mas não triste, começou a assinar a sua poesia como sendo de Beatriz. Beatriz era uma actriz que viera muito cedo para a cidade, sem família, esperta, alta (Rita era baixa), dominava os homens, tinha um apartamento na zona Sul, onde o incenso queimava e uma furiosa multidão de cores brilhava nas paredes (Rita morava com a mãe, ainda).
Rita saiu uma sexta-feira, pela noite, comprou cigarros, foi dar às ruas povoadas de gente. Deu, após minutos de observação concentrada, com um rapaz um pouco mais velho, talvez pelos trinta anos, que estava encostado à porta de um bar, de gin na mão e ar distraído. Não esperou mais: avançou para ele, começaram a falar. Rita contou-lhe que era Beatriz, falou da sua carreira de actriz e da peça que estava a ensaiar, sorria de forma segura. O rapaz disse chamar-se Luís; estava pouco tempo na cidade, fazia apenas um serviço no aeroporto, de concerto de helicópteros. Luís e Beatriz falaram, riram da rima dos nomes de ambos, olhares de cumplicidade estabeleciam essa ponte que une as duas margens.
Partiram de automóvel, Luís conhecia um lugar bastante deserto junto do aeroporto. Os lábios tocaram-se, o vestido marron de Beatriz saiu como se nunca devesse estar ali, colado ao corpo; os primeiros raios de sol, da madrugada, embateram no corpo de Beatriz, nu e transpirado, ocultando Luís por baixo. Quando as gaivotas atravessaram em bando o automóvel, muitos metros acima dele, Beatriz soltou um lânguido suspiro como se também ela tivesse emigrado subitamente para o país do desejo e voltasse logo depois, de bagagem atirada ao seu sofá, cheirando a incenso, exausta.
Beatriz, já de vestido posto, bateu a porta com um sorriso. «Beatriz não existe, sabes. Adeus», disse ao rapaz. Ele ficou a vê-la, pequena e ágil, a subir o monte de passo rápido, como se fosse um desafio contra o mundo. Quando deixou de a ver, ligou a ignição, o motor trabalhou, seguiu.
Luís chegou ao Instituto pelas 9 horas da manhã, deu conta que não tinha preparado ainda a aula para os seus jovens alunos do Anfiteatro B, da Ala Este. O Director Jorge Menard saudou-o, com «Bom Dia, João». Velho amigo, pensou João-Luis, ao entrar para o Anfiteatro B. E todos viram, com surpresa, que o Professor nessa manhã era uma miúda sardenta, de olhar rápido, pronta a instruí-los sobre o significado vivencial dos heterónimos.