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Sejam Bem Vindos, de novo, ao nosso Anfiteatro.
Espero que tenham reflectido sobre a nossa última aula, onde se falou da hipotipose e a poeta Maria Verde nos brindou com todo o seu encanto e maestria.
Hoje, irei falar de um livro que, segundo homens experimentados, deu origem àquilo que se chama o «romance literário». Estou, evidentemente, a referir-me ao livro de Cervantes, o «Dom Quijote».
«Dom Quijote» é, tal como «As viagens de Gulliver», um livro que muitos jovens lêem, sobretudo os rapazes, por estar escrito de uma forma simples, clara, aventureira. E, talvez por isso, a sociedade habituou-se a ver o célebre cavaleiro da Mancha e o Gigante em terra de anões (e o inverso), como uma mera fábula redutora e sem grande profundidade. Entre círculos de snobismo literário, o jovem pode fazer figura citando Proust, Joyce, Mann, mas se vier dos seus lábios a referência ao homem de lança em punho, alguém pode estranhar.
Não me interessa, aqui, dizer o que todos disseram já. Que Dom Quijote é o sonho, que vê gigantes onde estão moinhos, que imagina a sua Dulcineia esperando por si, que a sua triste figura (sempre apedrejado pela sociedade espanhola que vai encontrando) não é mais do que a paródia de uma coisa séria: que os homens são maus e fazem mal a um bom sonhador. Isto foi mil vezes repetido, até à exaustão, nada poderia eu dizer mais, acrescentar.
O que eu quero trazer para aqui é um par de detalhes que nem sempre foi bem trazido à luz. O primeiro é este: como ficou Dom Quijote louco? Este senhor vivia tranquilamente na sua casa, acabou por se fixar demasiado tempo na sua biblioteca e lia muitos romances de cavalaria. Estes romances, já se sabe, repetem o arquétipo do cavaleiro que passa por duras provas, valentia e honra, até conquistar o seu amor. Um dia, Dom Quijote acordou e começou a viver uma história destas, inventada a cada instante por si. O que eu quero realçar, sublinhar, destacar é isto: Dom Quijote ficou louco porque leu demais. Tomem muita atenção ao que isto quer dizer.
O segundo detalhe é este: Dom Quijote é fielmente seguido pelo seu escudeiro Sancho Pança. Gordo, homem do povo, habituado à pequena malícia e pequena mentira, pequeno furto quem sabe, mas de bom coração. Este Sancho Pança segue o seu louco senhor para todos os lados, numa amizade desmedida, que só os humildes, verdadeiramente humildes, conseguem ter. Onde estão os moinhos, Sancho Pança vê apenas moinhos, não gigantes. Mais, se alguém tentasse explicar a Sancho Pança que os moinhos podem ser gigantes «na imaginação», o nosso aio nunca iria compreender, sequer.
A humanidade inteira, portanto, divide-se nisto: aqueles que são Dom Quijote (o sonho contra o real) e os que são Sancho Pança (os que vivem dentro da realidade sem poder sair dela). Mas, filosoficamente, o que dizer sobre isto? Que o sonho vale tudo, encerrado o homem na sua própria loucura? Que a realidade sendo a realidade, basta-nos?
Um moinho é um moinho, pode ser um gigante, é mesmo um gigante?
Eis como António Gedeão respondeu a isto, no seu poema «Impressão Digital», de 1956:
[b]Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores,
De tudo o mesmo se diz,
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
[b]
É isso, sim, meus Senhores. Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes. Lição que deixaria Parménides, o grego, muito feliz. E pensem que não raramente, um poema é uma resposta a uma questão, sem a nomear e formular visivelmente (façam, por aqui, as vossas experiências).
E vós:
– São moinhos ou gigantes?