Vai, ano velho, vai de vez
Vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite esgota o copo
e a culpa do que nem lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.
Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos dos presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais...
Vade Retrum, pra trás!
leva pra escuridão
quem me assaltou O carro,
a casa e o coração,
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, Nos anais,
nas fotos do nunca-mais.
Vem, ano novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz modernas, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebercas
vem com uva e mel e desperta
em nosso corpo a alegria.
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso
e sacia em nós a fome
- utopia.
Vem na areia da ampulheta, como a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola na
casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.
Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.
Affonso Romano de Sant'Anna, poeta brasileiro, em belíssimo poema sobre a passagem do ano.