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Devido à enorme afluência de jovens a esta classe de Hermenêutica e Escatologia Literária (na última aula, vi alunos em pé, encostados ao fundo da sala, tirando as notas sem apoio), falei com o Director e, deste modo, passaremos na próxima lição ao Anfiteatro B, da Ala Este.
Posto este breve, breve, verbete.
Hoje falarei de forma muito curta (tenho o tempo contado, negócios urgentes) sobre Hermenêutica, uma vez que tenho pegado em assuntos de forma, de género e ainda não de interpretação. Como o ponteiro avança, não irei trazer para aqui Virgílio, Dante ou outra Alta Personalidade, mas farei uma hermenêutica contra-relógio de duas expressões. A primeira, que não irei desenvolver, é esta:
Sempre que o jovem vê escrito, numa placa, o aviso: «CUIDADO COM O CÃO», deverá ter em mente este facto – que não passa de uma tradução fiel do original latino, que já os romanos usavam afixado nos muros e portões das suas propriedades. Portanto: os Imperadores Ruiram, os Impérios caem, as esperanças morrem, os amores findam, mandam-se homens à lua, a língua desenvolve-se, as gerações multiplicam-se, os sonhos fazem-se e desfazem-se, mas uma coisa, meus senhores, essa, a humanidade entendeu que deveria ser sinalizada e gravada como eterna: a ferocidade do nosso próprio cão.
A segunda.
Na minha infância, já tarde, o meu grupo de amigos foi assaltado por um dito, que ninguém soube bem qual a origem (alguém ouviu dizer, a alguém que ouvir dizer), que circulou um par de semanas: «AS FEIAS É QUE ESTÃO SEMPRE A FODER». Curioso e divertido, isto, até porque entre nós ninguém tinha fodido ninguém, excepto um rapaz magro, de óculos, o Ezequiel, que nas conversas deixava a entender que tinha uma noite dormido com a própria prima e que, aí, se tinham «passado coisas». Esta expressão veio como foi. Como o peão. Quando o peão se tornou moda, todos nós andávamos com ele, atirando-o para o chão e fazendo-o rodopiar com fúria. Não dormíamos de noite, estabelecíamos uma competição acérrima, houve brigas, partiram-se vidros de janelas. Uma manhã, chegados à escola, ninguém falou do peão, o peão deixou de existir, evaporou-se, sem mais nem menos. O dito, portanto, deixou de existir como deixou de existir o peão.
Nunca mais ouvi a ninguém esta expressão, eu próprio nunca a usei entretanto, até que, um dia, nos bancos das repúblicas boémias da universidade, alguém falou de uma certa aluna de bio-quimica, antítese de Venus, que dormia com rapazes com uma frequência notável, disparando um companheiro meu, isto: «É como se costuma dizer, AS FEIAS É QUE ESTÃO SEMPRE A FODER». Espanto e riso, mas não dei grande importância, apesar de ter recordado e reconhecido a expressão.
Há poucos dias, lendo um autor norte-americano, num romance escrito, falha-me a memória, 1955?, 1962?, por aí, ele refere a certa altura que “como aquele dito masculino que diz «AS FEIAS É QUE ESTÃO SEMPRE A FODER»”.
Perguntei, neste intervalo, a várias pessoas, se já tinham ouvido a expressão a alguém, no cinema, em livros, a outras pessoas. Ninguém sabia sequer do dito, ninguém o ouviu. Apenas com estes dados, estou curioso para saber se a história da expressão é comum ou se, numa grande invenção masculina, autónoma em dois continentes distintos, os homens acharam que as mulheres menos dotadas de beleza têm uma sexualidade extrema, enquanto as outras não. Certo, é que esta expressão tem, pelo menos, mais de cinquenta anos.
Uma constatação empírica, tornada aforismo? Razões psicológicas, que revelam frustração e recalcamento, de uma percentagem significativa de homens, por não terem tido muitas mulheres formosas? Apenas um efeito da própria linguagem, na busca de um efeito imediato? Ou isto dá tranquilidade aos homens, esperando que as mais belas mulheres não andem por aí, fazendo com outros que não eles, o acto da cópula? Uma constatação empírica, tornada aforismo?
Se a expressão tiver uma origem comum, célebre por algum actor do cinema dos anos vinte, a história fica mais fácil. Mas a durabilidade da sua existência irá, sem dúvida, obrigar-nos a pensar isto sempre de um modo existencial, de género, psicanalítico, social, histórico, linguístico e semiótico – todos os instrumentos serão úteis. Até agora, apenas com estas referências, não posso ir além daqui.
Para quem assistiu à última aula, devo dizer que fiz aqui algumas, não muitas, distorções fortes, embora não quanto aos factos úteis à hermenêutica. Onde estão eles?
Próxima semana, já sabem, Anfiteatro B, Ala Este.
E cuidado com o vosso cão.
Não vá o amigo canino encontrar uma mulher muito feia.