Na estiva das palavras,
Altercas, xingas, suas,
Imprecas contra o mundo,
Te tentas traduzir.
Na estiva das palavras,
Labor sempre penoso,
Tu queres existir,
Monumentalizar-te.
Na estiva das palavras,
Tu queres transgredir,
Sacar das mãos anéis,
Os signos mutantes.
Na estiva das palavras,
Tu sangras e respiras
Retórica e sofismas
De luta interminável.
Na estiva das palavras,
Gritaste: “- Crucifica-o!”
Também martirizado
Na ambígua cruz da história.
Na estiva das palavras,
Sem dúvida verteste
Sentenças incontáveis,
Doutrinas e linguagem,
Loquazes paladinos,
Astutos e prolixos,
Que sabem como o gárgula
Usar bem a garganta,
Lançar verboso líquido
A tantos corações
Logrados no artifício
Das fábulas e máximas.
Na estiva das palavras,
Disputas e recreios,
Embate de discursos,
Nas sendas do ideário,
Travaste arrebatado,
Filósofo ou poeta,
Retórico ou sofista,
Em dúvida inquietante
Pensando respondê-la
Com séria metafísica,
Com fé e ideologia
Em busca de ti mesmo,
Do mundo que circunda
Teu frágil coração
Com vasto palavrório
De púlpito e sermões;
De tudo que te aflige,
A própria realidade
Que buscas na linguagem -
Perfeita relação,
Total homologia
Da imagem co’o real,
Da coisa co’a palavra,
Idéias e juízos
Que fazem de ti mesmo
Homílias e quimeras,
Mentida ficção
De que és um novo Adão.
E agora: que fazer?
Ser dono das certezas
É coisa de descrer!
Tu jogas co’infinito...
Na estiva das palavras,
Aspiras ao eterno,
Restando só de nítido
Um ritmo e sentido
Cativos de si mesmos,
Embora sempre queiram,
Suando gente alheia,
Enfim tornar-se livres,
De si até ser livres,
Do que não nos cativa,
Do que mantém cativo,
Do que não grita vivo
No dorso do argumento,
No braço da palavra,
Na luta do operário,
Na estiva do poeta.