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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
é no mar que submerjo nas noites em que não me encontro. e no silêncio descanso – um dia entregarei os olhos a uma estrela-do-mar. uma que por viver tão fundo nunca soube o que era um raio de sol – não os entrego por não querer ver mais. não. sou cego desde que nasci – nunca me vi por fora. só por dentro tenho uma vaga ideia dos corpos que me ocupam – talvez haja dentro do meu corpo um buraco que não tem fundo. onde outros corpos entram porque têm de entrar. e depois. saem porque têm de sair – acredito que não encontrem nada que os faça ficar mais um pouco. nem mesmo como caixeiros viajantes eles param. um banho retemperador. uma refeição. um bom sono para reaver energias e pela manhã. com as primeiras nesgas de luz. arrumar a mala e partir para uma nova etapa de sobrevivência – muitas vezes dou comigo a imaginar que os corpos são paridos em silêncio. num qualquer pedaço do meu corpo que ainda desconheço – loucura. só pode ser. às vezes imagino coisas que não lembra ao diabo – sempre tive corpos a entrar e a sair – estranho. entram e saem e nem uma palavra – nunca percebi a razão porque atravessam o meu corpo como se fossem donos da minha intimidade – atravessam – atravessam como os patos selvagens atravessam o céu à procura de terras refúgio. terras quentes. terras de abrigo – atravessam em formação. como se juntos fossem um seta gigante a indicar: é ali que vamos ser felizes – acredito que também estes corpos silenciosos atravessem o meu corpo para atalhar caminho. para se acercarem mais depressa de outros corpos. mais quentes. mais abrigados. mais protegidos. mais espaçosos. mais luminosos. corpos onde finalmente podem ser felizes – o meu corpo nunca foi grande. sempre me senti acanhado dentro dele. imagino sempre tanta coisa. e quero guardar tudo. quinquilharias que só eu vejo como tesouros – no passado dizia-se que tudo trazia saber. em cada velharia havia vida. o conhecimento assente em pequenos lingotes de tempo partiam de boca em boca. terra em terra. até que um tolo de ouvido tísico. ávido de saber. escrevia em papel a alma de uma nação: o seu povo em estado puro – também eu quero guardar tudo. quero fazer parte desta nação virada para o infinito do mar. destemida. louca. arrojada. altruísta. solidária. crente que a sua robustez de nação secular advém do acreditar. a força vem das dificuldades. quanto maior. mais ao ouvido os tambores marcam a marcha: contra os canhões. marchar. marchar – sempre marchei em dificuldades convencido de que estas trariam corpos com vozes para dentro de mim. mentira – ninguém ouve o silêncio – o silêncio traz sempre mais silêncio. silêncio dor. faca. mutilação. até que um dia damos conta que já não respeitamos o corpo que suporta todos os corpos. todas as portas. todos os buracos que abro para ter a certeza que na hora da morte não sou comida dos corvos – morte. morte. morte em silêncio. como velho. como trapo. como pó insignificante – nunca sei nada. e quero ainda saber tanto – tudo me ocupa espaço. aquela história de que o saber não ocupa lugar é a maior mentira que inventaram até hoje. uma mentira de um aldrabão. de um estúpido perdido do seu próprio corpo. um destes vultos que gosta de atalhar caminho pelos corpos. um preguiçoso – as saudades de mim são imensas. dos calções curtos. da bola. do pião. da carica. do calor das noites de verão. e dos invernos onde os cobertores da serra. de lã pura. agasalhavam os males da geada branca que cobria os campos. das memórias – com os pés encostados a uma botija de areia quente. rezava ao meu anjo da guarda. pedia-lhe perdão pelas faltas que não cometia e prometia-lhe que jamais voltaria a ouvir um palavrão. respeitaria os meus pais e os mais velhos. sempre. iria à missa. e nunca faltaria a uma aula de catequese. comungando todos os domingos a palavra do senhor – amém – acabava sempre com um pedido a deus. se por acaso me levasse durante a noite que eu partisse sem pecado. e no paraíso me esperasse o descanso eterno – estou cansado. a idade não pára de avançar e o coração já não encontra espaço para bater com precisão no meio de tantos corpos – triste e cansado. e os corpos sempre a passar calados. cada vez em maior número. e com mais silêncio. já arrastam os pés – ingratos. nunca foram capazes de pronunciar um obrigado por os deixar passar pelo meu corpo sem os questionar uma única vez – não adianta. sempre foi assim. sempre usaram o meu corpo de passagem e entre mim e eles há apenas tempo. tempo feito a relógio – passam. passam uns dias mais devagar. outros. mais depressa. e eu sem nunca saber o que fazer – olho-os. e percebo que os olhos estão costurados. passajados a linha de seda embebida em cera para resistir ao tempo. a boca cerrada por um cadeado forte. e nos ouvidos restos de folhas dos lusíadas – numa das pontas ainda se pode ler – adamastor – talvez estes corpos sejam adamastores zangados com o rumo que dei à minha vida