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Gê Muniz
DOIS VELHINHOS E SÓ UMA PASSAGEM
Os dois recurvados do tempo já, estacionados à boca do guichê da rodoviária para comprar os bilhetes do ônibus que os levaria de volta para casa – acontece que havia uma única passagem a vender para o último carro do dia:
- Pode ir embora Aristeu, vai tranquilo que depois eu vou.
- Não vou, Cidinho.
- Meu Deus, Aristeu, vai embora, pega esse ônibus que eu vou logo em seguida, no primeiro horário de ônibus que aparecer.
- Não. Não posso e não vou deixar você aqui sozinho a noite inteira nessa rodoviária mequetrefe cheia de trombadinhas. Ir antes de você está fora de questão.
- Você não tem a menor condição de ficar aqui esperando ônibus, qual o quê... Esqueceu que tem de tomar sua dose de insulina urgente? Esqueceu que tem uma cadela dentro da sua casa que está sem comer ração há um dia e meio? Esqueceu que você deixou as janelas dos fundos escancaradas e tudo indica que vai chover? Esqueceu que...
- Pára de tagarelar esse nhenhenhém chato, seu velho agourento! Eu não vou e pronto, a Milinha (cadela) pode estrebuchar de fome lá no quintal, eu posso babar espumas de diabetes no chão desta rodoviária imunda que não vou deixar você sozinho...
- E quem disse que você é boa companhia, hein, seu velho caquético? Quem? Você acha que está me fazendo algum favor ficando aqui, reclamando da merda da sua vida na minha orelha o tempo todo? Nada... Prá mim é um martírio enorme a sua desagradável presença. Vai cuidar da sua cachorra que é o único ser vivo nesse mundo que consegue aturar você por mais de um dia, vai... Ela sim merece a sua consideração, porque quando ela morrer vai subir aos céus num andor como paga de Deus por aturar você em vida. Ou quem sabe você não morre antes e dá um pouco de felicidade e paz prá essa cadela, hein?
- Nem me fala na Milinha morrer, seu ingrato. Você nunca soube reconhecer minha amizade, né? E tem mais: eu trato aquela cachorra melhor do que tratava a minha mãe, se bobear...
- Ahh, se vê que trata muito bem mesmo. Quer dizer então que você deixava a sua mãe sem sentir nem cheiro de comida, ainda para além de 2 dias? Humm. Você deve amar essa cachorra, muito mais que a sua mãe mesmo, né?
- Sei. Segundo você, eu sou insuportável, péssimo filho, além de causar maus-tratos aos animais. Nem sei por que você mantém uma amizade comigo, Dinho. Só que esse papo não me fará ir embora daqui antes de você. Aceite esse fato e pronto, cacete...
(Dentro do guichê o funcionário da empresa em nada se impacientava diante à ranhetice dos dois idosos. Assistia calmamente, mascando um chiclete, numa TV de 14 polegadas presa à parede, o finalzinho do primeiro tempo de um jogo qualquer de futebol, como se nada mais houvesse de interessante na face da Terra além daquilo. Ele sabia na certeza insofismável da sua função de bilheteiro que iria embora para casa assim que aquele último ônibus partisse da plataforma e não seria a discussão de dois velhotes, mesmo dando em morte, que mudaria uma vírgula desse seu destino)
- Só mantenho amizade com você, Ari, por pena, viu? Porque se não fosse eu você não teria um cristo com quem chorar as pitangas, seu velho reclamão. Quer saber? Então tá bom... Quer ficar, velho? Fiiiccaaa... Porque, agora, quem vai embora daqui sou eu! E me dê a chave da sua casa que eu mesmo vou pôr comida para a sua cadela, porque eu tenho consciência do que é passar fome e não desejo isso nem para um animal. Vou quebrar o seu galho ao menos nisso, ok?
- Isso, vá embora mesmo seu velho doente! Vá que você não tem brio para passar a noite aqui numa rodoviária sozinho, disposição que em mim sobra. E nem precisa alimentar a cachorra porque ela não vai morrer se ficar sem comer mais 6 ou 7 horas. Ela é a “minha” cachorra e, portanto, aguenta as necessidades tanto quanto eu.
- Isso mesmo, seu velho Tarzan! Puxa, como você é forte, nossa... Estou impressionado. Quem não o conhece que o compre, Ari. Mas toda essa macheza some rapidinho se a taxa de açúcar no seu sangue sobe, não? Aí você vira um molengóide todo suado e pede arrego que nem uma donzela, como tantas vezes já pediu para mim por telefone...
- Você não sabe o que é sentir isso que eu sinto seu maldito! Queria que você fosse diabético só um dia da sua vida para ver o que é bom prá tosse. Mas, nós sabemos que o seu mal é coisa pior, aquele problema que matou de desgosto a coitada da comadre Clélia, né? Seu mal é das “coisas moles”, Cidinho, “coisas totalmente inoperantes” há mais de 15 anos...
(Essa foi a primeira fala naquela discussão que chamou a atenção do bilheteiro, tanto que ele desgrudou os olhos hipnotizados da TV e ficou esperando a resposta do, agora, “velho brocha”.)
Mas os olhos de Cidinho enevoaram. Primeiro piscaram descontrolados por uma dúzia de vezes, depois aguaram feito uma esponja de louça molhada, de quando a gente aperta. Ele ainda tentou retrucar um impropério à altura daquele. Antes, silêncio. O bilheteiro esperava curiosíssimo da resposta, até o olho um pouco arregalado tinha. Aristeu também esperava já com um contra-argumento cabeludo à ponta da língua, mas Cidinho nada mais respondeu. Simplesmente não conseguiu. Só calou-se e recostou-se nas malas. Desta vez Aristeu pegou pesado.
Ali, Aristeu sentiu o peso ferino das próprias palavras e diante à reação do amigo, também enevoou as vistas de remorsos que aguaram de tantas lágrimas quanto os olhos dele. Chegou pertinho do ouvido já um tanto surdo de Cidinho e soltou em tom baixo, como que tentando consertar:
- Dinho, você sabe que eu sou tão brocha quanto você e há mais tempo ainda. Você sabe muito bem o quanto a diabetes detonou as minhas "partes". Releva as bobeiras do seu amigo. Nós somos dois paus murchos igual, porra!
Cidinho levantou de leve a celha esquerda e sorriu. Soltou um riso amarelo, irônico é verdade, mas existia algum tipo de satisfação mórbida na sua risada. Havia nela, nítido, um ar jovial ao tempo que resignado: alívio de poder chorar dos seus males na frente de quem o poderia entender completamente. Era fato que nada o que Aristeu dissesse àquela altura da vida de ambos seria imperdoável.
Nisso nem perceberam que se aproximava do guichê outro velho, aliás, este muito mais velho do que eles, talvez de idade até para ser pai deles. O ancião alquebrado, manejando um andor de alumínio a muito custo chegou ao guichê e de voz rouquíssima perguntou:
- Bilheteiro, ainda há passagens para o último ônibus?
- Sim senhor, há uma, mas estes dois senhores ao seu lado estão na sua frente na ordem de compra.
- Não, não bilheteiro! Não vê que ele é um tanto idoso e, portanto, com total preferência a comprar primeiro o assento? Fique tranqüilo, meu bom senhor – voltando-se ao velhinho - que aqui tenho o meu amigo que esperará comigo o próximo ônibus. Por favor sirva-se da passagem – completou Aristeu dando uma piscadela para o Cidinho.
- Ah, meus bons homens, muito agradecido, senhores, não vou me fazer de rogado porque sou muito idoso para ficar aqui sentado por horas nestes bancos sem qualquer conforto. Deus lhes pague!
- Por nada, senhor... E boa viagem! – respondeu lépido Cidinho, como a empurrar o andador do velhote com a voz num tom engraçado de boca cheia.
Foi assim que partiu o velhinho na última cadeira vaga daquele ônibus.
Aristeu e Cidinho resolveram ir ao café para cantar a vitória das suas juventudes sobre aquela espécie de Matusalém. Ali, prozearam alegres como dois moleques inconseqüentes. Falaram de belas mulheres, sexo, viagens e futebol. Até fumaram, coisa que haviam parado. Sentiam a noite toda deles e que eram capazes de tudo.
(Depois duns quinze minutos de boa prosa foram para frente da rodoviária e contrataram um táxi para fazer a corrida de 95km de volta para casa: veja lá se teriam saúde nas costas para aguentar os bancos terríveis de tão duros daquela rodoviária imunda por algo mais que meia hora. Além do mais era preciso tomar insulina urgente e alimentar a Milinha...)
(Gê Muniz)