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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
dentro de mim há cada vez menos de mim. estou a ausentar-me – há momentos em que já não existo. não estou. não estou para nada – gosto desta palavra nada. sempre que a uso fico invisível. não me reconheço. e não reconheço os outros. talvez os outros me vejam. talvez identifiquem a minha face. a minha voz. os meus olhos. até aqueles gestos que se repetem por serem tão meus. pretérito – epilepsia emocional. espasmos. contracção involuntária dos músculos. dos olhos. da boca. da mente. resta o adn – o adn tem uma particularidade única. reproduz com elegância a sinopse do seu corpo. mesmo quando o seu dono está ausente – predominam os tiques. a boca a pender para o lado. as mãos transpiram. os olhos piscam mais de três vezes e depois aquela maneira de inclinar o corpo como quem vai cair. talvez até morrer a qualquer momento – e os outros dizem: é ele. e eu digo: não sou eu porque eu nunca deixaria os olhos fecharem-se. ou a língua parar. eu gosto dos músculos da face exaltados e do corpo firme. tão firme como as árvores que se amarram ao chão com raízes que não sei onde param – não reconheço ninguém porque não me reconheço a mim – aceno. sorrio. pulo. faço o pino. estendo a mão para um cumprimento de circunstância entremeado com duas dúzias de palavrões. e digo: prazer em conhecê-lo e. num ápice. torno-me parte do mundo. sou igual. porque ninguém sabe o que penso – quando penso. invisível ao mundo. das ruas apinhadas de gente. dos carros. dos relógios nas torres da igreja a bater por gente que já não é. das crianças com fome de sapatos desfeitos de subirem sempre a mesma rua sem pão. dos mendigos. dos sem-abrigo. dos infelizes de todos o infelizes. deste mundo cruel. tudo isto é uma sala de espelhos onde o corpo gira ao tempo das imagens. umas vezes sou alto. outras baixo. outras apareço aos ésses. com as mãos no chão. e depois ainda há aquele outro espelho que divide o corpo em dois: do lago esquerdo a cabeça e do lado direito o corpo distorcido da realidade – sou muitos e não sou nenhum. os espelhos são donos de tudo. não tenho forma de descobrir a verdade do corpo. teria que partir todos os espelhos. e quando se parte um espelho são sete anos de azar – talvez já não tenha tempo para gastar o tempo todo. isto para não dizer que azarento como sou o mais certo era partir à primeira o espelho onde o corpo é aquele que tem a memória – estilhaçado. perco tudo. os nomes que gosto e os que não gosto. as vozes que me adormecem e as que amarram à noite ouvindo ventos que correm pelas brechas mais exíguas da memória. e até a minha gaivota cinzenta pararia de voar. não haveria espaço dentro de mim para voltar a abrir as asas – talvez um dia possa fazer dos vidros estilhaçados um novo eu – em vidrinhos –