Poemas : 

No escuro

 
Vigio o escuro.
Lembro-me de quando era criança e o escuro me fazia perguntar o que eram aquelas sombras vindas do meu roupeiro.
Como eu me lembro de ficar quieta debaixo dos lençóis para que os monstros debaixo da cama não me viessem comer.
Cresci.
Estou mais alta, mais gorda e talvez mais ciente ou apenas realista.

A idade comprou-me um novo par de olhos que viu como o azul afinal é preto e o verde, cinzento.
Todos crescemos.
No fim acabamos por deitar as roupas com os nossos bonecos favoritos, que agora apenas serveriam numa mão, e passamos a comprar segundo o que dizem "estar na moda".
Passamos pelas ruas e olhamos, não vemos. E por vezes, o simples olhar se deixa de parte.
Olhamos para as esquinas sem sequer reparar no mais pequeno pormenor como olhávamos quando nos empoleirávamos no banco de trás do carro e punhamos as mãos sobre o vidro, acompanhando com a cabeça as ruas, a relva, as casas e outros carros que passavam, o céu.
E é incrível como tinha tudo a sua beleza, a sua magia. Como as folhas se desprendiam das árvores e se deixavam levar pelo vento, amarelas, até cairem no chão e serem varridas para longe.

Hoje talvez nenhum de nós ainda saiba o que é beleza. Talvez não respondam que é ver um cãozinho na rua e passar-lhe sobre o pêlo fofo ou olhar para as nuvens e imaginar o Peter Pan a passear entre elas, arrastando-as com ele para a Terra do Nunca.

Sim, crescemos.

Deixámos para trás os rostos de bébe ainda virgens de vincos da vida, deixámos crescer o cabelo crescer livrando-nos dos cortes horríveis que a nossa mãe nos obrigava a fazer.

Todos aparentamos mais altos, mais fortes, mais fixos, mais imbatíveis, mais inderrubáveis.
Deixamos de ter medo das sombras do roupeiro ou dos monstros que vivem por debaixo dos nossos colchões.
Pergunto-me então se deixamos de ter medo do escuro.

Aqui estou eu, vigiando-o.
Agora parece mais vazio. Já não vagueiam por entre ele os monstros e não se imaginam os seus rugidos ferozes, agora já se veêm as paredes.
Hoje resta-nos o silêncio, que nos sufoca.
Que diferença! No final, ambos comem bocados de nós...

Já não se imaginam criaturas, reproduzem-se memórias.
Já achados crescidos e erguidos perante a vida, escondemo-nos não do fantasma mas sim de nós mesmos.
Já não me cobro debaixo dos lençóis, mas tapo os ouvidos para não ouvir o silêncio que desperta estas vozes aqui, rugidos de outros monstros mais reais, que chamam por quem foi e levou tanto quantas memórias deixou.

Como no escuro vêm vozes que se deviam ter esquecido ou desvanecido com o tempo, mas que voltam no fim de uma qualquer noite passada em branco.
Ele traz o amor que foi levado e que não voltou como a esperança tanto quis fazer querer. Como ele assusta, voltanto a mostrar nas nossas mentes as imagens que estes olhos de gente grande viram.

Dizemo-nos inquebráveis apenas porque deixámos o chão bem longe e nos elevámos dele a cada ano que passou.
E, por isso, já não desconfiamos das sombras que a árvore lá fora faz na parede, mas sim de cada sorriso, de cada abraço, de cada intenção, de qualquer implicância que possa trazer.
Já não corremos para os braços das nossas mães, já não chapinhamos na lama, já não saltamos dos baloiços agora que o chão está mais longe e que a queda pode ser maior.

Agora escondemo-nos não do escuro, mas sim nele.
Já não tememos os monstros com os dentes afiados e mãos compridas, tememos sim o passado. Que vem em modo mudo, sem se deixar aperceber. E ataca-nos, quando já estamos no chão.
Como o passado pode ser assustador, como nos mastiga entre a saudade e o orgulho.

No escuro não somos grandes nem fortes.
No escuro perdemos a força como perdemos um dia a inocência.
No escuro somos crianças pequenas e frágueis que encolhem perante os monstros que criámos.

Lau'Ra
 
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Lau'Ra
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