Acariciar-te a sangue frio sem lubrificar a minha língua, domesticar os teus gritos no crepúsculo em brasa no teu olhar, ser vegetariano e antropófago na ausência dos teus lábios,
Quem?
Detectar os pontos essenciais do teu corpo protegido com arame farpado, arrancar as raízes que te prendem ao olhar choramingas com o qual desfilas nas ruas, armadilhar as tuas ilusões com um sopro de ironia e algum erotismo gracioso,
Quem?
Ensaiar um sorriso diante do espelho, ensaiar uma declaração de amor, sair de casa esquecendo o sorriso no espelho e a declaração no interior das cordas vocais e, de repente, ter que improvisar o espontâneo diante da realidade feroz esplendidamente fértil,
Quem?
Semear um relâmpago nas nuvens, agarrá-las pelo colarinho, esbofeteá-las até ressuscitarem as lâmpadas fundidas do teu talento para reinventar um novo amor,
Sim, quem?
Hei-de descobrir o endereço dos teus segredos ilegítimos, hei-de largar esta abstinência de ti e deixar-me desviar pelo vício de te proibir a respiração com golpes de poesia, hei-de passear por ti em sentido inverso, distribuir-te o melhor papel na encenação, coagir-te com meiguices a representar que não estás a representar quando a tua boca deita fora um beijo em minha direcção, sepulta-me os destroços da minha sombra, corrige os traços oblíquos do meu rosto,
Quem?
Logo pela manhã, pentear-te o cabelo, os delírios, as lágrimas, a solidão, a voz hesitante, o corpo todo despenteado, o sono descabelado, o pijama enrugado, logo pela manhã, não ser vulgar, ser obsessivamente cúmplice das noites remuneradas com a tua carência afectiva, trair-te com outra, sim, seduzir uma outra fracção de eternidade, atrair-te ao folclore de palavras com alma, vazias por dentro, fragmentar o medo de te ouvires a ti própria, impedir que em mim se infiltre o teu suor, a metamorfose dos teus presságios de esperança e…
Quem?
Quem te vai relembrar a razão da tua vida quando não mais tiveres razões para recordar a tua memória? Quem irá preencher a textura do teu vazio trágico quando de ti o mundo ficar cheio? Quem irá dar sangue aos teus versos quando a inspiração te fugir do peito? Tirar fotocópias aos sonhos demitidos a meio do caminho, quem? Quem vai? Ler as palavras contraceptivas que fizeste desabar no útero dos poemas, ler-te sonetos quando tu desaprenderes a ler com as sensações, quem? Adivinhar as tuas mãos quando os teus dedos se fecharem, quem vai olhar por ti o mundo quando os teus olhos avistarem o deslumbramento absoluto, quem te vai amar e desamarrar dos paradoxos deste silêncio audível nas folhas em branco?