Contos : 

Pai e Filho

 
Pai e Filho




Desejava muito poder abraçá-lo e cobrir-lhe a face de beijos sinceros, apertados, mas cadê a coragem? Envelhecia sem poder ver realizados esses desejos. Apenas uma vez cortei essa amarra esquisita e jamais me esqueci.
Cruzei a infância e a juventude tentando desvendar o que poderia existir de tão escondido entre nós dois. Pouco soube de sua vida – nem tão floreada fora – sua orfandade precoce, sua luta exaustiva para sobreviver à vida comum e às incomuns saudades que se enxameavam a moldurar pesada solidão órfã.
Cedinho eu saía de casa, rumo à escola. Levava comigo o exagero de uma preguiça que a brisa friorenta do nascedouro do sol dava-me. A orfandade diferente me era oferecida do aconchego quente do lençol, cúmplice do colchão desforrado, acariciando-me por toda a noite, entre sonhos e mais sonhos. Papai saía bem antes, quando era madrugada e eu sonhava. Ainda tinha tempo para sentir o perfume do sabonete que usava, quando ia preparar-me às primeiras horas da manhã, no mesmo banheiro que ele usava. Aquele homenzarrão ficava tão pequenino dentro dos meus sonhos expectantes, mas tão gigantesco quando o esperava chegar lá pelo meio-dia, cheio de uma voz estentórica, ríspida, que anunciava seu corpo cansado do próprio peso e do laborão vencido apenas na manhã.
Mamãe corria para pôr a mesa mal chegava da escola, arrastando pelos braços eu e minha pesada pasta contendo os livros e os cadernos.
_Em um instante eu ponho o almoço para você.
_Tirem aqui minhas botas. Luis, venha cá!Já me vou, pai, já indo eu tô.
Ia servi-lo. Em minha face apenas o ar preocupado em ter que bem servi-lo. Possuía-me certo medo nem tão infantil, porque seu vozeirão me dava, às vezes, e reprimia por mais vezes ainda, assustava-me. Desatava-lhe os cadarços da botina, retirava-as, depois as meiasDê-me um copo d’água!Sim, senhor.
Lembro-me, certa vez, de que dei-lhe um copo com água geladíssima, como assim gostava de bebê-la. Tomou-a desembestadamente diante da intensidade e, por isso, caíram-lhe pingos – e eram muitos – na roupa, após encharcarem os pêlos do bigode. Pus minhas mãos sob seu queixo para evitar que se molhasse. Antes não o tivesse feito.
_Danado, deixe a água cair, estou morrendo de calor.
Eu nem quis entendê-lo. Meu medo dizia-me que ele é que estava certo e podia gritar com os decibéis que achasse mais convenientes. Minha mão molhada deixou seu queixo para trás e, com ela, levei meu coração e meus olhos até o quarto, onde chorei por uma certa servidão, meio-torta, meio-certa.
Nem ao menos pude enxugar as lágrimas e mamãe já gritava por mim. Dessa vez ouvia um grito cheio de um cheiro bom de almoço, que sabia calar-se diante de minha tristeza.
_Estava chorando? O que houve?
_Não, mãezinha, tava não.
O almoço nos era servido diante de um silêncio mais triste que nostálgico. Nenhum de nós alimentava escasso apetite. Até chegar a sobremesa – quase sempre saborosos doces caseiros feitos por ela – tínhamos que ultrapassar o silêncio sepulcral. Ele estava na cabeceira da mesa. Ao seu lado direito, mamãe. Eu era o segundo. Meus outros três irmãos do outro lado da mesa: redondos cavaleiros da távola quadrada. Todos os dias se repetiam gestos e atos sacratíssimos ao redor daquela mesa; nada do que acontecia era fortuito.
Quando já homem feito, às portas do casamento, estive frente a frente com o homem que eu aprendera a admirá-lo com medo. Comemorávamos uma grande data e estávamos muito alegres. Diante dessa alegria toda, meus olhos o olhavam distantes, querendo levar meu corpo a ele, abraçá-lo forte, apertadamente sem me incomodar com o tempo. Armei alguns passos e desviei a ida. Receoso estava de que nada desse certo e eu tropeçasse diante dos outros olhos contentes da festa. Tomei outra dose de uísque e não sei de onde, mas que chegou, veio-me uma forte dose, agora de coragem. Fui e abracei-o feliz a descontar anos-luz de subtração de carinho e afeto. Quando quis demorar-me mais, senti seus braços me empurrarem. Olhou no profundo dos meus olhos alegres àquele instante. Pensei que me daria um outro mais apertado. Não! Que tristeza!
_Está bêbado, não é, safado? Você não é disso. Antes de me abraçar, senti logo seu bafo de álcool. Modere com a bebida, senão...
_ Bebi pouco, pai. Meu abraço não bebeu nada!
_Que maluco! Já visse abraço beber?
Depreendi que havia nascido para não o abraçar nunca. Era para admirá-lo de longe, sem esses enfeites que as emoções nos presenteiam vez em quando. Era mesmo um filho besta, sonhador, caçador dos abraços sofridos e incomuns. Eu já me era diferente de qualquer outro abraço, isso sim me era desigual ao mundo. Ainda bem que havia estudado bastante e conquistado um certo autocontrole que me fazia um homem áulico das lições mostradas, não só aos olhos, mas ao coração também.
Naquele resto de dia domingueiro, contentei-me em abraçá-lo ao longe, sem que nem mesmo ele me visse. Abraçava-o por nós dois, sem que nada percebesse. O próximo abraço que lhe daria seria no leito de morte, quando a doença já houvesse roubado de seu corpo o último grama de carne e de alegria.
Hoje, há dentro de mim uma forte dor de ausência, esta alma que nunca me ensinou a gritar mais forte e também fazer-se ouvir. Abraço-o em minhas orações, nos abraços que oferto a outrens, diante das agruras da vida. No espelho, como se nele visse em mim sua cópia, é onde o abraço me sai mais verdadeiro. Abracei-me logo neste conto que não conta tudo de mim, nem dele, nem de absolutamente ninguém. Continuo diferente dos outros e de mim, como se assim me pedisse a vida dentro da luz que persegue minha alma, hoje nem mais tão triste como outrora. Aprendi a abraçá-lo, abraçando não apenas a lua, mas todo o luar fresco das noites em que o recordo. Bem que minha saudade é maior que qualquer abraço que meu coração lembra ter dado um dia.

 
Autor
Paulino Vergetti Net
 
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