Crónicas : 

morte ao fim da tarde

 

Puxou a cortina do banho para o lado, com uma mão no rosto a limpar os olhos tacteou com a outra á procura da toalha, encontrou-a, amarfanhou-a entre as mãos e mergulhou nela o rosto encontrando alivio para o leve ardôr que sentia nos olhos. Começou então o lento ritual de limpeza do corpo. A toalha, velha, de felpo áspero e seco ia sugando a água que lhe escorria profusa pelo corpo, esticou o braço esquerdo limpando em actos circulares do pulso ao sovaco, levantou a mama, invejosa da altivez da juventude, para limpar por baixo. Reparou na carne pendente do braço, numa espécie de músculo invertido, a segurar-se ao osso, meneou a cabeça, acto continuo passou a toalha para a outra mão repetindo a operação. Inclinou-se, estribou uma perna na borda da banheira limpando-a da mesma forma do calcanhar ao alto das coxas, viu o monte de vénus, generoso, pensou: "tenho que marcar hora na esteticista". Repetiu a operação com a outra perna, saiu da banheira, mirou-se ao espelho, enrolou a toalha no cabelo, prendendo-a no alto da cabeça. Já no quarto vestiu o robe... Abriu o cortinado da janela, mirou os prédios cinzentos, tristes, que a vista lhe oferecia: "na Quarteira é que era bom", tinha os prédios na mesma mas vislumbrava-se uma nesga de mar... e á noite a água fria e clara em luares de azuis. Tinha sido na última vez que fizera férias há 10 anos atrás, já grávida do Francisco, e ainda com a ilusão de felicidade eterna que os sorrisos do Artur lhe prometiam. O emprego de tecelã no 1º turno, o matraquear de teares, o algodão pairando no ar, asfixiante, os berros do encarregado lembrando o atraso da produção depressa lhe tiraram a doce ilusão que devia ser propriedade universal e imutável.


Olhou para a foto do Artur na sua mesa de cabeceira, com aquele olhar emoldurado por uma melena oleosa, de matador, dizia ele nos tempos áureos, que ela nunca achou grande coisa, mas era um moço trabalhador e uma desculpa para escapar aos berros da mãe, á censura silenciosa do pai e aos ardores intimos que sentia, que quando aplacados, a consciência a fazia correr para o confessionário.


Agora quando o Artur lhe diz: "Odete, chega aqui", a repulsa é imediata, entrega-se sem se dar, desejando que ele não tenha ido recentemente ás mulheres da boite para assim ser mais rápido: "porra, mas porque raio não se serve só delas?". Encaminhou-se para a sala e deu com os olhos nela, no chão: "como raio veio isto aqui parar?", pegou-lhe encaminhou-se para o quarto do filho, as meias pelo chão, as cuecas sujas esquecidas: "quantas vezes já lhe disse para meter a roupa suja no cesto?" A cama por fazer, a profusão de brinquedos em desalinho. Olhou-se novamente ao espelho, extenuada, deixou que o cansaço a invadisse, lhe tomasse conta do cérebro. Acariciou a coronha da pistola, desenhando-lhe os contornos, apertou firmemente enlaçando-a, colocando o dedo no gatilho como viu naquele filme, o "Dirty Harry"; "aii, como era o nome daquele actor? Não interessa! Agora não interessa mais... Cansada, sinto-me tão cansada".


Com a pistola firme na mão direita, levantou-a, encostou o cano á têmpora. Lembrou-se do telefonema da professora do Francisco, a pedir-lhe para ir lá no dia seguinte: "já não sei o que lhe hei-de fazer", dissera. Se o Artur sabe desanca-o. "Mas não interessa, não interessa nada, 'tou tão derreada". Fez pressão na têmpora... O indicador direito pressionou um pouco o gatilho, lento mas firme: "o que tinha que fazer hoje á tarde? Tou tão cansada..." O cão da arma movimenta-se para trás com a pressão do gatilho. "Se ao menos aquela merda daquele encarregado parasse de ser nojento".


O dedo pressionou mais um pouco o gatilho, o corpo retesou-se na expectativa, o cão da arma atingiu o ponto de não retorno... Ouviu-se um estalido sêco... Odete caiu desamparada para trás, com o choque contra a cama a toalha soltou-se, o cabelo caiu em desalinho sobre os lençois, num quadro quase bonito, o braço pendeu no bordo da cama, a pistola de plástico soltou-se da mão caindo no soalho de taco com um som ôco. Ficou assim de olhos fechados, morta, até o filho chegar da escola.



 
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jaber
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/10/2011 20:37  Atualizado: 15/10/2011 20:39
 Re: morte ao fim da tarde
Senhor José Alberto, aproveite bem este comentário que lhe vou deixar, porque é o último que tenciono fazer aqui.
Leio-o há imenso tempo. Descubro-lhe a leitura dos clássicos, dos imortais, em cada linha que escreve.
Não o faz por cópia de estilo, não. Fá-lo numa refrescante análise sobre a vida.
Não a vida insonsa dos intelectuais ou dos cultos, mas a vida difícil daqueles que ainda hoje sofrem agruras e têm o negro como côr.
Este seu texto é exemplar daquilo que digo.
Odete é uma personagem de outros momentos seus de prosa, porém hoje, foi-me oferecida nua, numa desconcertante visão sobre a morte e aquilo que ela representa, tendo a conta que personagens como ela têm a estranha sina e a deliciosa capacidade de morrerem as vezes que forem necessárias.
É um peso e simultaneamente uma libertação.
Parabéns pelo excelente momento e o meu abraço.

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 19/10/2011 17:04  Atualizado: 19/10/2011 17:16
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Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: morte ao fim da tarde
Jaber,
tenho lido o que tens escrito ultimamente, e fico sempre acobardada em deixar-te as minhas palavras.
Acobardada é o nome que encontro mais apropriado, porque morro de medo que tu (zangado comigo...) te ponhas numa cruzada sem fim lembrando-me erros antigos ou pecados que não cometi mas levei-os às costas.
Mas isto é um pequeníssimo pormenor. Não venho aqui com ladainhas mas sim dizer-te o prazer enorme que me dá ler-te. Falas da vida, do quotidiano da vida com uma envolvência quase desconcertante.
Quantas Odetes têm vontade de fazer o mesmo em determinada altura das suas vidas?
Sou (também má a comentar. rs. Desculpa. O teu texto merecia que o fizesse com maior talento, mas se me permites resumo tudo isto ao mais simplista.
Gostei muito, e se to digo é com sinceridade.
Obrigada por me aturares.
Vóny Ferreira