Às duas horas da manhã, desperto de um sono profundo, pois o calor já não me deixava dormir. Com o blecaute na cidade inteira, todo o apartamento estava mergulhando em escuridão. Procurando fontes alternativas de luz, aperto o interruptor da sala, numa tentativa idiota de confirmar o óbvio da falta de energia. Acho meu isqueiro, mas não velas, e com ele caminho pelos cômodos sem ter algo certo a fazer. Lembro do meu notebook, que ainda guardava energia e vejo algo com o que me distrair. Vou ao gabinete de estudos e ligo o aparelho, porém, logo ao entrar no sistema operacional a tela foi tomada por uma figura diabólica: a amedrontadora garotinha do filme o exorcista. Com seus olhos de fúria e sorriso maligno, me encara, tomando toda a tela do computador. “Esc” e “Ctrl + Alt + Del” não funcionam; é certamente um vírus que infectou o aparelho nas minhas navegações do dia anterior. Deixo-o ligado, apesar de inútil, ainda é uma fonte de luz no breu do apartamento. Enquanto o terror iluminava parcamente o gabinete, alcanço a varanda e vejo as estrelas. Uma profusão delas toma o céu noturno e a imagem é belíssima. Em noites normais, não se vê tamanho número delas na abóbada escura. É lindo, mas também um pouco assustador, pois reflito sobre a imensidão do universo e os mistérios que nos guarda. Fico me perguntado como ainda tem gente que não acredita em Deus. Acendo um cigarro e fico observando os edifícos no entorno. Algumas janelas emitem bruxuleantes luzes; os moradores encontraram suas velas. Vejo uma idosa na varanda com sua vela, fazendo o mesmo que eu, admirando o escuro e as estrelas. Em outro lugar uma família brinca de fazer figuras de sombras com as mãos. Vejo outras pessoas, nas varandas, nos quartos, esperando, com certeza, o blecaute passar para voltarem às suas camas ou a seus afazeres noturnos, seja trabalho, estudo, ou entretenimento, que não me interessam. Volto a pensar em mim e me lembro de minhas dívidas com meus credores. Lembro ainda, com um certo arrependimento, as dívidas de meus devedores que perdoei no passado, mas cujo dinheiro poderia me ajudar agora. Não tem importância, foi o certo a fazer com quem está em situação muito pior que a minha. Lembro da situação financeira da empresa, que não está boa, e dos prazos dos vencimentos para com os fornecedores. Imagino como terei de me esforçar para angariar recursos e venho nos últimos dias bolando estratégias para esse intento.Tento esquecer, meus problemas me atormentam, mas o céu estrelado é belo demais para ser ignorado. Algumas constelações aprendi na escola e tento identificá-las. Vejo planetas e aglomerados de estrelas, fico extasiado. Depois de algum tempo, a energia volta, a sala se ilumina e esqueço o céu e volto aos meus problemas profissionais. Desligo a luz da sala e isso me devolve a sensação de estar no controle. Meus débitos me dão dor de cabeça e procuro voltar a dormir. O ar condicionado agora esfria o quarto e minha cabeça. Sei que meus sonhos são melhores que meus pensamentos atuais e tento relaxar. Amanhã retomo os desafios diários. Vou caindo no sono, mas de repente lembro que o terror ainda ilumina o gabinete de estudos. Tarde demais, pego no sono, mais tarde é novo dia.
Rodolfo G. Neves