Com a samarra por cima de uma camisola de malha grossa, o frio nunca foi coisa de lhe meter medo, embora não fosse nada agradável. Mas enfim, viesse o frio do mundo que ele estava preparado para o encarar de alma aberta. Tinha que ser! As ovelhas e os borregos tinham que pastar e não eram umas geadazecas que iam impedir isso.
O pai sempre lhe dissera que os bichos eram mais importantes que qualquer vontade. E que vontade era, meu deus! Ficar debaixo das mantas com o braseiro aceso, enquanto o gelo lá fora esbranquiçava tudo, era, sem dúvida, uma tentação difícil de combater.
Naqueles dias o pasto era raro... a geada, sempre essa, queimava tudo onde assentava. Tinha que se andar muito, na constante procura de erva. Valiam-lhe, por aquelas alturas, os sobreiros e as outras árvores que, mercê da protecção da copa, deixavam o chão verdinho à sua volta.
Quem nunca se fazia rogado e se "pintava" para aquela azáfama do pastoreio, era o Rabino, o cão. Um rafeirote empertigado com esperteza de malandrim. Mas era bicho bem mandado e cumpridor. Quase que falava! Pelo menos fazia-se sempre entender. Parecia um contabilista, não havia forma de faltar uma ovelha no rebanho sem que ele desse por isso... estivesse o animal tresmalhado e era certo que era encontrado.
Na mesma altura em que comprou o cão, o pastor havia ouvido, em conversa na taberna da aldeia, que os judeus eram gente esperta e peritos a fazer contas. Ficou-lhe essa! Daí até olhar para o estilo do cachorro, para o seu ar esperto e lembrar-se do nome “Rabino”, foi um instante. Lá ao seu jeito, o cão tinha mesmo maneiras de judeu.
Sempre viveram os três, assim, numa caseca no meio de nada. Os três? Sim... só o pastor, o pai e o cão, pois porque mãe, mulher sem juízo, já não existia por ali... em boa verdade, nunca existiu. Fugiu, cedo lá para a cidade, com um viajante que lhe prometeu tudo.
E assim, entre as sopas do dia, vai seguindo a vida, enquanto se espera pela Primavera, que lá se vai aproximando com o alongar dos dias, enquanto o sol vai matando o gelo.
Valdevinoxis
A boa convivência não é uma questão de tolerância.