Um dia ainda hei-de escrever um livro com a história da minha vida - que pretensão a minha, como se alguma vez o conseguisse fazer. Eu, uma simples filha de um marceneiro e de uma camponesa, e que nem sequer chegou a acabar o secundário...
Lá por ir escrevendo uns textozitos de trazer por casa, isso não quer dizer que tenha capacidade de arrumar ideias que se agigantem no papel. Não da maneira como o estão dentro da minha cabeça, ordenadinhas por épocas e em espaços temporais distintos. As da infância de um lado, as de adulta do outro. Numa secretária de pinho infestada de buraquinhos do caruncho, tenho apartadas as da juventude, para lhes poder chegar mais depressa visto que as pergunto mais vezes. De vez em quando vou lá espreita-las e cuidar para que continuem lustrosas, impecáveis. Percorro os corredores, as prateleiras e verifico que estão tal e qual como quando para ali as carreguei. Dou uma espanadela por aqui e por ali, demoro-me nalgumas e ignoro outras, conforme as importâncias que lhes releguei. É o meu sótão sagrado que só eu tenho a chave e onde gosto de passar um bocado sozinha, de modo que nunca para lá levo ninguém que pudesse desarrumar ou depravar as minhas tralhas que tanto estimo.
Mas esta ideia fixa da intenção de escrever o tal livrito, continua aqui a esgadanhar-me o espírito. Um dia destes sou bem capaz de lhe começar a deitar letras, a ver se me aliviam as cócegas.
É que ninguém faz ideia das coisas que tenho para ali a estorvar-me no sótão, para além das que estão nos devidos lugares!...