Poemas : 

A Velhice do Padre Eterno

 
Jehovah, por alcunha antiga o Padre Eterno
Deus muitissimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Poz-se a esgaravatar co-o dedo no nariz,
Tirou d’esse nariz o que um nariz encerra,
Deitou depois isso cá baixo, e fez a terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapeu,
Pol-o em cima da terra, e zás, formou o céo.
Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis ahi porque o céo ficou todo estrellado.
Depois o Creador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo serrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assignaria,
E furioso escarrou no mundo sublumar,
E a saliva ao cahir na terra fez o mar.
Depois, para que a Egreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada alguns cruzados novos,
E Tartufo podesse inda d’essa maneira
Jejuar, sem comer de carne á sexta feira,
Jehovah fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada marmota.
Em seguida metteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas extranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos
Lançou sobre a terra, e d’este modo insonte
Fez elle o megatheiro e fez o mastodonte.
Depois, para provar em summa quanto póde
Um Creador, tirou dois pellos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
(Obra em que elle estragou quatrocentos machados)
Dispersou-os no globo, e foi d’esta maneira
Que nasceu o carvalho o platano e a palmeira.

…………………………………………..

Por fim com barro vil, assombro da olaria!
O que é que imaginaes que o Creador faria?
Um pote? não; um bicho, um bipede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
O pobre Creador sentindo-se já fraco.
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!) pensou: — Deixem-nos de asneiras.
Trago já uma dôr horrivel nas cadeiras,
Fastio… Isto dá cabo até d’uma pessoa…
Nada, toca a dormir uma sonata boa!
Descalçou-se, tirou os oc’los e chinó,
Pitadeou com delicia alguns trovões em pó,
Abriu, para cahir n’um somno repentino,
O alfarrabio chamado o livro do Destino.
E enflanelando bem a carcassa caduca,
Com o barrete azul celeste até á nuca,
Fez ortodoxamente o seu signal da cruz
Como qualquer de nós, tossiu, soprou á luz,
E de pança p’ro ar, n’um repoiso bemdicto,
Espojou-se, estirou-se ao longe do infinito
N’um immenso enxergão de nevoa e luz doirada.
E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.


Guerra Junqueiro
 
Autor
RoqueSilveira
 
Texto
Data
Leituras
2649
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
4 pontos
4
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/09/2011 13:18  Atualizado: 18/09/2011 13:18
 Re: A Velhice do Padre Eterno
Ficou perfeita tua apresentação do texto de revolta do sábio escritor...
É por isso que considero que nossa imaginação reina e não governa... podemos através dela dizer muito (certo /errado) e dependendo da época não sermos encarcerados...caso os poderosos sejam os censores.

Gostei mesmo, obrigada pela partilha.

Abraços

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 18/09/2011 15:19  Atualizado: 18/09/2011 15:19
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8112
 Re: A Velhice do Padre Eterno
conheci ontem este poema num evento na Casa de Guerra Junqueiro no Porto, junto à Sé, onde está parte do espólio do poeta, um coleccionador.
tratou-se ontem de uma exposição de pintura com materiais fluorescentes acompanhada de músicos, perfomance teatral e declamação de poemas do poeta, entre eles este.
foi tudo muito bem conseguido.
aqui partilhei este que considero genial.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/09/2011 16:18  Atualizado: 28/09/2011 16:18
 Re: A Velhice do Padre Eterno
Parabens a guerra Junqueiro e a ti por nos mostrares este poema bjs