A letra e o tempo
ou
Um poema dito espontâneo
Como muita gente não tem
Mais coragem de escrever
Daqui a um cem número de anos ( prevêem os cientistas)
a Terra estará coberta de gelo, convertida em desolada
[Antártica.
Ainda não se sabe se o frio virá aos poucos, definhando
[recolhendo
e espiando os homens em suas tocas
ou se súbito congelará a bicicleta e o menino
o engenheiro em seus esquadros
o guarda em suas esquinas
e todas as letras e livros e estantes acumuladas desde a
[idade dos sumérios.
Todas as palavras hirtas
As tábuas da lei, O Livro dos Mortos, O Alcorão, O Finne-
[gans Wake – tormento enfim fossilizado
num planeta gélido ex-correndo no vazio.
Fria a letra, frio, talvez, o sentido
desses textos e o sangue das batalhas de Homero
e os álgidos tratados de ironia de todos os sábios e
[Cervantes
petrificadas e transparentes as enciclopédias
e os poemas de Li-Po e os escritos em rocha viva dos
[fenícios
toda pedra, enfim, onde uma só letra houver
espesso gelo descerá sepultando um sol longínquo.
E assim pousados (eternamente) aguardaremos
quem sabe um arqueólogo ou um deus silencioso
que roçando as asas sobre essas geleiras de vana verba
absorto se indagará : òu sont les feux d’antam ?
E sobre as neves d’aujourd’hui irá lendo les chimières et les
sagesses et folies eternelles
e cauteloso, como convém, ao sábio, irá colhendo a estória
[do perdido paraíso
o cântico dos cânticos, o realizado apocalipse
e só compreenderá o estranho ser humano
quando desse livro depreender a mensagem :
onde se leu fogo, leia-se água
onde se escreveu tudo, leia-se nada
Affonso Romano de Sant´Anna.