[Contrapontos: um sonho, as dores do crescimento, o corte e de novo, a dor — na noite, evola-se um aroma de chocolate!]
Madrugada... acordo num sobressalto;
deitado de costas, esfrego os olhos; tateio a cama.
no silêncio da casa adormecida, os ruídos se avivam —,
estalos de madeiras, o estrídulo de um grilo na copa,
e nos outros quartos, o uníssono ressonar.
Ao longe, de pontos distintos da cidade,
os latidos dos cães parecem alastrar a noite
como se o Amanhecer nunca antes existira.
E o barulho de um carro que se distancia,
torna ainda mais vazia a extensa avenida
e deixa no ar um por quê sem resposta
que insiste em me fazer pensar na morte.
Nervoso, de olhos pregados no escuro,
reviro as cobertas numa bucha empapada de suor.
a insônia dói... a ansiedade aumenta,
o silêncio avulta em zumbidos intensos;
o vazio cresce e é tanta a sede,
que me levanto e vou até à cozinha;
a luz incandescente transtorna as coisas —,
ferem-me os olhos os gumes dos punhais
do brilho intenso dos alumínios na prateleira.
sobre a escura madeira da mesa nua,
restos de ontem —, biscoitos de polvilho,
algumas xícaras, um bule esmaltado.
Formiguinhas pretas trabalham ativamente
na faina de carregar os cristais do açúcar derramado,
e um vidro mal tampado de chocolate em pó —,
a súbita estupefação de as coisas serem sem mim!
De repente, estaca-se o escuro trem de pensamentos;
paro... abro o vidro bem devagar, fecho os olhos,
e lentamente, sorvo o delicioso aroma do chocolate...
O que me traz, e aonde me leva, esse aroma?!
Agora, a vida me parece, de novo, possível,
posso até saborear alguma [antiga] felicidade,
ter de novo aquela singela alegria criança,
aquela, que a Manhã sempre me trazia —,
a alegre corrida pelas ruas ainda sonolentas,
para chegar em tempo, antes da sineta da escola,
e assim, mais uma vez, renovar a promessa
de um dia, eu vir a "ser gente"!
Não ouso fechar a tampa do vidro de chocolate
para não encerrar a promessa de mim,
pois, neste instante, é tênue o fio da lembrança.
e para o sonho, o corte e a dor pungente,
o aroma do chocolate trescala na noite
e promete uma ruidosa esperança no amanhecer —;
a criança eu vive ainda,
e pensa que vai "ser gente"!