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borboletas de agosto - 4 de 5

 


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


4.

agosto – 5 de “agosto toda a fruta tem o seu gosto” – neste dia há luto de um tempo cruel – agosto guarda a despedida como se o ontem sobrevivesse ainda dentro do hoje – o relógio não pára. e o tempo envelhece. os olhos vêem ainda o corpo quase quente. com as mãos travessas a encobrir meio defunto – o tule branco aconchega a fazenda que cobre os ossos partidos pelo homem vestido de preto. disfarça marcas de dor e recebe flores como se existisse primavera – há tão pouco de ti. a doença comeu-te. restam apenas pequenos traços teus. pendurada no lábio a última palavra. sem som. morta como tu pelo tamanho da dor – no canto dos olhos lágrimas feitas pedra. guardam o dia em que te vi chorar pela última vez. imaginei que chorasses as mãos doces que te amparavam. mas não. choravas o adeus – sabes pai. tenho medo que um dia me roubem a memória. não quero perder o passado. quero os agostos com nome. com dor. com saudade – no meu agosto quero recordar o último momento. sentir o corpo dobrar sobre ti. o beijo a cair. e um nunca mais nos nossos olhos. os teus fechados – quero guardar o barulho do encontro das portas a selar a escuridão. a chave a rodar e a sombra do sol caída no chão para sempre. o nunca mais feito buraco – nunca me tinhas dito que havia chaves só para fechar – sabes pai. fui eu que guardei a chave. essa que nunca dá para abrir. nunca mais quero outra. ainda não encontrei lugar para a sossegar. pousei-a no móvel da entrada. quem sabe para alguma emergência – acabou. a partida era a tua / nossa libertação – acabou. agora não morres mais – os gritos passaram a descanso. o peito guardou o último ar e os olhos partiram para sempre da aflição dos que te viam – acabou. agora não mais levantarás esse braço doente a pedir socorro – acabou. morreu contigo essa dor que não parava de crescer. todos os dias ficava maior e tu todos os dias mais pequeno. definhavas. escondias-te atrás das almofadas. defendiam-te das escaras – acabou. já não há mais dor a entrar e a sair do quarto. já não há mais sofrimento nesse corpo enrodilhado – acabou pai. bem sei que estavas só há muito tempo. os olhos já não guardavam a nossa voz. já não viam as palavras sussurradas nem as festinhas feitas com a palma da mão – tudo era feito devagarinho. tínhamos medo de te magoar. nunca sabíamos quando estavas a dormir ou a enganar a dor – estávamos ao teu lado e não tínhamos forma de te dizer. sempre estivemos. nunca te abandonamos. todos – bem sei que partiste dentro daquela casa enorme. branca. com pessoas vestidas de branco. luzes brancas e as janelas fechadas como se tu ainda pudesses sair a voar com uma das minhas gaivotas – tu já não querias voar. não podias. estavas cansado e o corpo já não tinha forma de se atirar ao vento – queríamos todos mais um dia. estávamos obcecados. perdidos no desespero. egoístas. e foste sem uma mão que te segurasse o último suspiro – perdoa-nos pai. mas nós também estávamos doentes – não devias ter descido à terra no nosso dia [dia do pai]. mais dois dias e chegava a primavera. e as andorinhas. e o verde. e a esperança das flores a dar cor aos campos que ainda ontem eram terra escura – se eu tivesse envelhecido mais depressa pai. se eu tivesse sido um pouco mais sábio. tinhas partido da tua casa abraçado aos teus. que somos tantos – mas não foi assim. partiste sozinho. e agora nunca saberei se chamaste por alguém – tínhamos ainda tanto para partilhar. finalmente eu estava a envelhecer mais depressa do que tu mas não esperaste por mim. desististe. e eu com as palavras aqui presas ao tempo que não aproveitei – sabes. tenho medo do tempo. nunca tinha ouvido o nome de alzheimer. nem sabia que roubava os filhos aos pais. os dias ao tempo. as mãos aos abraços. a boca aos sorrisos – tenho medo. tenho muito medo. não quero este nome nunca mais no futuro. não quero ver o negro nos olhos dos teus netos. e eles estão enormes. se visses como cresceram. se visses como eles têm tanta coisa nossa. tua. porque o que eu tenho é teu e por isso tudo o que temos é teu – ah. se tu um dia encontrasses uma forma de dizer que estás a vê-los crescer. eu ficaria contente. ficaria mais tranquilo – sei que onde estás só acontecem coisas boas. talvez encontres uma maneira de me dizer que ainda ocupas a tua cadeira. naquela mesa feita de pão e sorrisos – nessa noite de março. não podia chorar onde todos choravam – nessa noite fiquei homem. como nunca tinha imaginado poder sê-lo de um momento para o outro – sabes. li ainda há pouco tempo num livro de lobo antunes que um homem só se torna verdadeiramente num homem depois de perder o pai – é verdade. naquela noite percebi que uma família é feita de homens de família e estas nunca acabam com as partidas dos homens. hoje somos todos cada vez mais tu – nesta casa já tens netos que brevemente serão homens – nesse dia voltaremos a falar. tenho comigo um montão de coisas guardadas para te levar. vai ser uma conversa e tanto –
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 09/09/2011 01:47  Atualizado: 09/09/2011 01:47
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 Re: borboletas de agosto - 4 de 5
Minha alma fica plena quando te lê... querido, obrigada. bjs