É um conto de inverno
Que o cego crepúsculo de neve transporta sobre os lagos
E os flutuantes campos da fazenda na taça dos vales,
Deslizando tranquilo entre os flocos agarrados com a mão,
Sobre o pálido bafo do rebanho junto à vela furtiva,
E as estrelas que caem frias,
E o cheiro do feno em meio à neve, e a distante coruja
Que adverte entre os apriscos e o gélido refúgio
Agarrado à fumaça branco-ovelha da chaminé da estância
Nos vales cruzados pelo rio onde a história é contada.
Outrora, quando o mundo envelheceu
Numa estrela de fé pura como o pão que boiava sem destino,
Como o alimento e as chamas da neve, um homem desenrolou
Os pergaminhos de fogo que ardiam em sua cabeça e em seu coração
Rasgados e esquecidos numa casa sobre uma dobra da campina.
E ardendo então
Em sua ilha flamejante cingida pela neve alada
E as esterqueiras brancas como a lã e os poleiros das galinhas
Que dormiam enregeladas até que a chama da aurora
Penteasse os pátios encapotados e os homens da manhã
Tropeçassem nas enxadas,
E o rebanho espreguiçasse, e o gato arisco perseguisse o rato,
E os pássaros eriçados saltassem para caçar, e as suaves
Ordenhadoras arrastassem seus tamancos sobre o céu desmoronado,
E toda a fazenda despertasse em seus brancos afazeres,
Ele se ajoelhou, chorou, rezou,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha
E à xícara e ao pão partido entre as sombras bailarinas,
Na casa abafada, no decorrer da noite,
À beira do amor, apreensivo e atraiçoado.
Ajoelhou-se sobre as pedras frias,
Chorou desde a crista da dor, rezou ao céu nublado
Para que a fome fosse embora uivando sobre alvos ossos nus
Além das estátuas dos estábulos e das pocilgas com tetos celestes
E do cristal da lagoa dos patos e dos ofuscantes currais solitários
Até o lugar das orações
E das chamas, onde pudesse vagar sob a nuvem
De seu amor cego pela neve e precipitar-se para as brancas tocas.
Sua miséria desnuda o golpeava e, arqueado, ele uivava
Embora som algum flutuasse no ar enrugado em sua mão
A não ser o vento que excitava
A fome dos pássaros nos campos do pão, da água, lançados
Nos altos trigais e a colheita a derreter-se em suas línguas.
E sua anónima miséria o enlaçava e ele ardia extraviado
Quando, frio como a neve, tinha de correr entre os vales cruzados
Pelos rios que desaguam na noite,
E afogar-se nos torvelinhos de sua miséria, e estender-se enrolado,
Agarrado ao centro desde sempre desejado do branco
Berço desumano e do leito nupcial eternamente procurado
Pelo crente perdido e o proscrito expurgado da luz.
Liberta-o, gritava,
Perdendo-o de todo no amor, e arroja a sua miséria
Nua e solitária na engolfante noiva
Para que ela nunca germine nos campos da branca semente
Ou floresça escarranchada na carne agonizante.
Escuta. Cantam os trovadores
Nas aldeias mortas. O rouxinol,
Poeira nos bosques sepultos, voa com os órgãos de suas asas
E soletra o seu canto de inverno aos ventos dos mortos.
A voz da poeira líquida que vem das fontes extintas
Está falando. O córrego seco
Salta com balidos e latidos aquáticos. O orvalho repica
Nas folhas trituradas e nos reflexos que há muito já não brilham
Da paróquia de neve. As bocas entalhadas na rocha são
cordas tangidas pelo vento.
O tempo canta por entre as obscuras campânulas mortas. Escuta.
Foi um som ou certa mão
Que abriu de par em par a tenebrosa porta na terra de outrora
E lá fora, sobre o pão do solo,
Uma ave se ergueu radiante como uma noiva em chamas,
Uma ave amanheceu, e seu peito se emplumou de neve e escarlate.
Olha. E os bailarinos se movem
Sobre os mortos, a neve se vestiu de verde, liberta ao luar
Com uma revoada de pombos. Exultantes, os cavalos de cascos solenes,
Centauros mortos, regressam e percorrem os alvos pastos alagados
Nas fazendas dos pássaros. O carvalho morto sai em busca do amor.
Os membros esculpidos na rocha
Saltam como ao som das trombetas. A caligrafia das velhas folhas
Está dançando. Os traços da idade sobre a pedra se entrelaçam num rebanho.
A voz de harpa da poeira das águas se desgarra de uma dobra das campinas.
Em busca do amor, alça seu voo a ave de outrora. Olha.
E as asas selvagens se elevaram
Sobre a sua cabeça enrugada, e a doce voz das plumas
Esvoaçou pela casa como se o pássaro entoasse louvores
E todos os elementos da lenta queda se rejubilassem
Porque um homem solitário se ajoelhara na taça dos vales,
Sob o manto, em sossego,
Junto ao assador e à caneca escura sob a faiscante luz da lenha,
E o céu dos pássaros com a voz emplumada o erguia ao sortilégio
E ele corria como o vento atrás do voo em chamas
Para além dos celeiros sem luz e dos currais da fazenda em calma.
Nos pólos do ano
Quando os melros morriam como sacerdotes nas sebes embuçadas
E as distantes colinas tangenciavam o tecido dos condados,
Sob as árvores de uma só folha corria um espantalho de neve,
Precipitando-se por entre os torvelinhos das moitas esgalhadas como cervos,
Andrajos e orações caíam sobre
As colinas ajoelhadas e ecoavam nos lagos adormecidos,
Perdidos a noite inteira e a vagar por muito tempo no despertar
Da ave através dos tempos, das terras e dos flocos de neve.
Escuta e olha por onde ela navega no mar agitado pêlos gansos,
O céu, o pássaro, a noiva,
A nuvem, a miséria, as estrelas fincadas no azul, o júbilo
Para além dos campos semeados e o tempo escarranchado na carne agonizante,
E os céus, o céu, a tumba, a ardente pia batismal.
Na terra que já fora, a porta de sua morte se abriu de par em par
E o pássaro desceu
Numa colina branca como o pão sobre a concha da fazenda
E os lagos e os campos flutuantes e os vales cruzados pelo rio
Onde ele rezava para alcançar o derradeiro prejuízo
E a casa das preces e do fogo, já terminado o conto.
A dança se extingue
Na brancura que já não reverdece, e, morto o trovador,
Aflora o canto nas aldeias de desejos calçados pela neve
Que outrora entalharam as silhuetas dos pássaros no pão profundo
E fizeram deslizar as formas dos peixes voadores sobre os lagos de cristal
Degolou-se o ritual
Do rouxinol e do centauro morto. As fontes voltam a secar.
Os traços da idade dormem na pedra até que a aurora se anuncie.
Jaz o júbilo. O tempo sepulta o clima da primavera
Que retinha e saltava com o fóssil e o orvalho renascido.
Porque a ave se deitara
Num coro de asas, como se estivesse morta ou adormecida,
E as asas se movessem em surdina e ele se sentisse louvado e casado,
E por entre as coxas da noiva envolvente,
A mulher com seus seios e o pássaro de crista celestial,
Foi ele enfim derrubado Ardendo no leito nupcial do amor,
No torvelinho do centro desejado, nas dobras
Do paraíso, no botão rodopiante do universo.
E ela se ergueu com ele florescendo em sua neve derretida.