Um dia, houve.
Eu era jovem, cheia de sonhos.
Rica de imensa pobreza
que me limitava
entre oito mulheres que me governavam.
E eu parti em busca do meu destino.
Ninguém me estendeu a mão.
Ninguém me ajudou e todos me jogaram pedras.
Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando, caminhando...
E me nasceram filhos.
E foram eles, frágeis e pequeninos,
carecendo de cuidados,
crescendo devagarinho.
E foram eles a rocha onde me amparei,
anteparo à tormenta que viera sobre mim.
Foram eles, na sua fragilidade infante,
poste e alicerce, paredes e cobertura,
segurança de um lar
que o vento da insânia
ameaçava desabar.
Filhos, pequeninos e frágeis...
eu os carregava, eu os alimentava?
Não. Foram eles que me carregaram,
que me alimentaram.
Foram correntes, amarras, embasamentos.
Foram fortes demais.
Construíram a minha resistência.
Filhos, fostes pão e água no meu deserto.
Sombra na minha solidão.
Refúgio do meu nada.
Removi pedras, quebrei as arestas da vida e
[plantei roseiras.
Fostes, para mim, semente e fruto.
Na vossa inconsciência infantil.
Fostes unidade e agregação.
Crescestes numa escola de luta e trabalho,
depois, cada qual se foi ao seu melhor destino.
E a velha mãe sozinha
devia ainda um exemplo
de trabalho e de coragem.
Minha última dívida de gratidão
aos filhos.
Fiz a caminhada de retorno às raízes ancestrais.
Voltei às origens da minha vida,
escrevi o "Cântico da Volta".
Assim devia ser.
Fiz um nome bonito de doceira, glória maior.
E nas pedras rudes do meu berço
gravei poemas.
Cora Coralina,coleção melhores poemas, Editora Global,3a. Ed., 2008, pág. 241-242.