não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
3.
agosto. 5 de agosto e o verão contínua a tombar para norte. só as noites sabem que mais dia menos dia todas as folhas serão chão. e o verde será castanho-ouro. e a chuva cairá devagarinho para limpar as feridas feitas em tempo alegre – não há verões como no passado – nos dias de calor acudo-me das lembranças para aliviar o corpo da aflição – volto ao passado. a praia. os gelados olá com as miniaturas escondidas dos heróis da banda desenhada. o homem de branco a gritar: olha o pãozinho de leite. o furo na caixa dos chocolates regina com bolas às cores. as barracas listadas de azul e branco fechadas a norte. os tapa ventos. os corpos deitados em toalhas coloridas com cabeças serenas viradas a sul. e eu ali. enchendo o areal com a vida a sorrir e a maré a ir e a vir – no passeio alegre os altifalantes acompanham com música o sorriso dos veraneantes. sempre com sugestões comerciais atraentes. sobretudo para os escaldões. hidratar a pele é essencial e para isso. nada melhor do que um boião de nívea – no ar. gigante. a bandeira verde. sinónimo de banhos. só me aborrecia aquelas horas perdidas a compor a digestão das almoçaradas de uma mãe teimosa. insistia em dizer que o ar do mar puxava corpo – coisas do iodo que só havia nas praias do norte – valiam os novos amigos de verão na partilha do relógio tartaruga. os minutos arrastavam-se lentamente até às cinco horas da tarde. hora do mergulho – no último banho do dia. quando o sol já não aquecia. a água gélida esmagava os ossos. os dentes rangiam. a pele enrugava. os olhos retiniam e o moreno do corpo passava a um azul glacial – saía da água como um náufrago sai da tempestade. esgotado. com os braços pendurados aos ombros. arrastava-me pelo areal – no cimo. de toalha na mão. a minha mãe aguarda a chegada da felicidade que levo no olhar. e o calor cerca o corpo com braços quentes a rabujar – estás gelado. já te tinha dito que saísses da água. se ficares doente quero ver como vai ser – era assim que se era feliz – com a noite o banho quente arremessava o corpo para a cama. cansado. quase morto. adormecia ao som da sarronca. sinal de mau tempo no mar – mas eu estava em terra. feliz. aconchegado aos cobertores imaginava o próximo dia e adormecia com a certeza de que a manhã traria um novo raio de sol – mas agora o agosto é março e o sol não é o mesmo. nem a praia. nem há corpo a brincar no areal. a saudade acabou com todos os agostos – naquela dia sem data [nenhuma data é importante quando alguém parte para sempre] tu partiste. sabias que a partida era definitiva. nós também – sabíamos que nunca mais haveria agosto. o calor seria para sempre uma recordação de março. seria saudade. seria dor. seria perda – noite. na casa que era nossa havia lágrimas escondidas em todos os cantos. todas tombavam de forma diferente e o barulho não parava de magoar – os corpos dobravam-se sobre si. talvez para o chão ficar mais perto e as lágrimas demorarem menos tempo a fugir da dor – desesperado. pedia que deixassem de ser barulho. de ser barulho-dor. não podíamos continuar a chorar como se já não houvesse corpo para beijar – não merecíamos este magoar. a dor vinha de tão longe. ao principio nem demos conta. mas depois tornou-se enorme e por último já não cabia nos corpos – estávamos todos a morrer à tanto tempo. e o sofrimento sempre a agigantar-se. e os olhos a cair com as mãos rasas de força – já não havia energia para amarrar a vida – noite. noite escura. e eu ali sem sequer poder dobrar o corpo. sem poder chorar. sem poder interromper a dor daqueles que seriam vida no dia seguinte – apesar da dor havia vida dentro daqueles corpos. ainda éramos uma família – a minha mãe de olhos pretos. não chorava. agoniava em água. afogava-se. e eu sem encontrar um abraço com palavras para distrair a dor – nenhum abraço consola. nenhum abraço adia a partida. nenhum abraço alivia a dor. nenhum abraço mata o luto – naquela noite era necessário gritar. precisávamos de gritar. gritar alto. gritar para sobreviver ao adeus. como se a dor diminuísse com a força dos soluços – sabes pai. eu não queria chorar por ti à frente de tanta gente. não podia. queria ser como tu. forte. a tua vida não podia acabar em lágrimas. há tanto para dizer. a dor não me pode roubar a memória – nessa noite. prometi que seria forte. como tu. e desta vez tudo seria diferente. tu partirias finalmente para um lugar que te merecesse – vaidoso. aconchegas o nó da gravata. sacodes o pó dos sapatos. aprumas o corpo e dizes: a minha família é esta que me chora – o corpo continuava a escurecer com a noite. e o passado a chamar cada vez mais por nós – não posso chorar. um dia saberei encontrar o momento certo. hoje não posso. a mãe precisa de sossegar. os irmãos de reaverem a firmeza. a ua [lourdes] de retomar as orações. e os netos aceitar a vida assim como é – não quero chorar. alguém tem de estar com a face limpa – sabes pai. importante agora é saber que depois do beijo a mãe. a matriarca da tua casa. recobre a força para continuar a agasalhar o teu lugar. o teu perfume. o teu andar. a tua voz. a tua gaveta das meias. as tuas gravatas com nódoas que tu nunca reparavas. as tuas fotos penduradas – estou em agosto e esta noite de março não tem fim e eu sem saber o que fazer com a primavera que sempre chega por estes dias – talvez a culpa seja da escrita. das palavras que nunca escrevem o que sinto. ou talvez seja desta mania que tenho de pensar. passei a vida toda a pensar. penso por tudo e por nada e nunca chego a lado nenhum – sabes pai. ando perdido com o corpo às costas desde sempre. e não sei o que fazer para te dizer que gostava de ter mais boca. mas não tenho. só a uso para dizer coisas que nunca dizem nada. e os sentimentos. estes que me definham o interior nunca se chegam aos lábios – malditos sejam – mas está sossegado que não vou chorar. boca que não sabe falar também não sabe soluçar –