Prosas Poéticas : 

Saudade

 

Logo de manhãzinha, pouco depois da abertura das portas do cemitério, chega na sua velha motorizada. É um ritual que cumpre diariamente, religiosamente.
Pequeno de estatura, seco, apenas algumas cãs esquecidas na cabeça, olhos grandes e redondos que recordam uma vivacidade já perdida. Veste pobremente, parcamente. Mesmo quando as manhãs estão frias, apenas uma velha camisa de flanela aos quadrados, uma camisola desbotada e umas calças de estamenha lhe cobrem o corpo. Quando chove, usa um oleado, que enfia pela cabeça, para se proteger. Nos pés, traz umas rijas botas, daquelas que se compram nas feiras, em couro, cor de mel, que se ensebam para as proteger e assim durarem mais tempo.
Após pegar numa saca de plástico, daquelas dos supermercados, entra no cemitério e dirige-se para uma campa que fica ao fundo, virada ao Norte, junto de um muro de granito, que anos de rigorosos Invernos tornaram escuro e triste.
A campa é humilde como ele, térrea, quase despida, apenas quatro pedras a delimitar-lhe a forma, uma singela lápide de mármore branco com um nome, duas datas e uma cruz gravadas em baixo-relevo e pintadas a preto. Em frente, dorme um imponente jazigo, em mármore cinzento, polido, com duas colunas, imitando a ordem dórica, ombreando uma porta de vidro fumado. No seu centro, uma cruz lapidada de majestosas proporções e em tons doirados.
Ali chegado, pára, benze-se, baixa os olhos e parece dizer uma pequena prece. Depois, começa por recolher folhas velhas e pequenos ramos de eucaliptos ali vizinhos; o ramo das margaridas, já com as pétalas caídas, é substituído. Tira da saca de plástico um bonito ramo de crisântemos, pois Novembro é o seu mês, e coloca-o junto da lápide. Com a água de um balde, que entretanto trouxera, lava o mármore da lápide, demoradamente, carinhosamente, até ficar imaculado. Depois de arrumados os seus pertences, fica imóvel olhando o chão sagrado, como quem se despede. Então, duas lágrimas parecem nascer-lhe dos olhos, caladas, sofridas resignadas. Benze-se e dirige-se para a saída. Antes de colocar o capacete, pega no lenço e limpa os olhos ainda húmidos. Monta e parte para voltar no dia seguinte.

António Barros

 
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