Poemas : 

TRAVADO

 
1

Encontraram-no estático diante do monitor.
Bem que a mulher desconfiara de tanto tempo na frente do aparelho. Era de manhã quando sentou para dar uma olhada na internet. Pela brecha da porta ela espiou. Lá estava ele segurando o mouse e o olhar fixo na tela do monitor. O filho tentou invadir o quarto para ver o MSN.
Foi detido pela mãe.

―Deixe seu pai trabalhar! Desde que acordou está lá. Não foi nem para o escritório. Deve ser algo muito importante.

Nem mesmo o almoço fez o pessoal perceber o inusitado. Ela pensando na pressão alta do pai; na possibilidade da filha ser contaminada pelo vírus da gripe suína no Rio Grande do Sul; na viagem de férias que faria com o genro; na desarrumação que deveria acontecer para a instalação de mais um armário na cozinha. A filha mais nova lembrando o último capítulo da novela das oito e o envio de mais um currículo para a agência de emprego. O filho tentando encontrar mentalmente os acordes da nova composição que fizera para a banda em que tocava como baterista. Nem se lembraram de chamá-lo para a mesa.
Antes de cair na cama para o habitual cochilo da tarde um último olhar e tudo muito calmo, exceto a música saindo baixinho do monitor trazendo mais sono ainda.

―Quando quiser comer me chame!

Enfiou – se nos lençóis. O dia estava frio.
Escurecia quando acordou. Passou pela porta do quarto sem atentar para o marido que continuava no mesmo lugar, na mesma posição. A mesa continuava do mesmo jeito, cada prato em seu lugar e a comida intacta. “Saiu sem comer nada”. Ligou a televisão para ouvir Datena já que não precisava arrumar a mesa para o jantar. Médicos anunciaram a morte de mais cinco pessoas provocadas pela gripe. Mudou de canal lembrando que ele sempre chegava durante a novela das seis.
Dessa vez não chegou.
Olhou para o celular. Não era muito de telefonar, principalmente naquele aparelhinho cheio de botões confusos. Mas tinha que aprender. Todas as amigas lidavam com computador, celular, mp3, câmera digital. Não queria ficar ultrapassada no tempo. Sentia-se diminuída quando confrontada com as outras que trocavam e-mails entre si.
Com calma conseguiu discar os números do celular do marido que estava anotado na agenda. Pressionou o aparelho sobre o ouvido esquerdo esperando ouvir a voz quente que tanto adorava. O telefone chamou e ela ouviu a musiqueta que indicava alguém ligando. O som vinha do quarto. “Saiu sem levar o telefone. O que estava acontecendo? Primeiro passou a manhã sentado no computador, não quis nem almoçar, agora tinha saído sem levar o celular, coisa esquisita”.
A chegada da filha mais nova interrompeu-lhe os pensamentos.
― Veio mais cedo hoje!
― O professor do cursinho apanhou uma gripe. Não houve aula. Cadê papai?
―Ainda não chegou; estou estranhando.
―Ele não telefonou?
―Não. Eu liguei, mas ele deixou o celular em casa.
―Ligue para o fixo do escritório.
―Ah! Minha filha, ele cancelou o telefone fixo, por economia.
― Vou mandar uma mensagem para ele pelo Messenger, pode ser que esteja “on line”.
Pelo celular ela acessou o programa que permitia ver pela internet o local de trabalho do pai.
―Veja mamãe, não é uma maravilha? Papai pode vigiar o escritório, a firma, os telefonistas tudo pelo telefone, em qualquer lugar que estiver, e a gente também.
― É muito bom, mas veja se fala com ele por que estou preocupada. Ele nunca fez isso.
Nada.
As câmeras do escritório e da firma de segurança vasculharam quase todos os departamentos e nenhum sinal do empresário.
― Espere ai que vou falar com um dos telefonistas!
―Não senhorita, O senhor Benildo não apareceu por aqui hoje.
―Vocês ligaram para ele?
― Não. Ele ordenou que só ligássemos quando houvesse alguma alteração no serviço. Hoje foi tudo muito tranqüilo.
― Ah! Mamãe não se preocupe. Ele deve estar chegando. Ponha o café que vou dar uma olhada no meu Orkut.


2


Benildo ouvira todo o diálogo entre a filha e a mulher, mas não podia se mexer. Nenhum dor no corpo, apenas uma leve sensação de sede. Estava travado, estático, paralisado. A tela do computador à sua frente estava escura, no modo de proteção, esperando um clique para abrir a claridade e revelar as janelas solicitadas. Catalepsia. Aquilo era um ataque cataléptico, tinha certeza. O terror fez surgir uma leve camada de suor na testa. Ia acontecer o que ele mais temia na vida: ser enterrado vivo. Não! Não seria possível diante do avanço da tecnologia atual. Provavelmente os médicos vão descobrir que eu estou vivo, e que apesar da imobilidade estou com todos os órgãos funcionando normalmente. Há também a possibilidade desse ataque passar assim que injetarem a medicação apropriada, mas as histórias que conhecia sobre corpos revolvidos no caixão erram horripilantes. Devia ter seguido o conselho da mulher de maneirar mais com o trabalho, evitando o stress. O corpo chegou ao limite.
A visão periférica permitiu-lhe ver a mão pousada suavemente sobe o mouse. Um leve toque. A luz da tela apareceria, quem sabe aquilo não acabava. O cérebro juntou todas as forças e ordenou, porém nenhum músculo se mexeu. Não entendia como pudera chegar até àquela hora sem haver sido descoberto. Quanto tempo permaneceria assim? Ouviu os passos da filha vindos para o quarto e sorriu por dentro imaginando a surpresa. A moça não entrou onde ele estava. “Ela vai para o computador dela, é claro!” Então gritou interiormente o mais que pode na esperança que houvesse um contato telepático salvador.
Nada.
A música de introdução do Jornal Nacional lhe deu a noção exata das horas. Os locutores anunciaram a melhoria de Fellipe Massa, saindo do coma induzido a que fora submetido em conseqüências do grave acidente ocorrido no grande prêmio da Hungria. Ouviu o agradecimento da esposa do corredor pelas orações feitas em favor do marido. Quis fazer uma oração, mas se lembrou que tinha perdido a fé. Percebeu que esta não provava nada, além de impedir as perguntas. Deus não existe. Como poderá ouvir-me? A escuridão do quarto o remeteu para um tempo em que tinha medo dos mortos. Concluiu que uma coisa levava a outra. Enquanto teve medo dos mortos acreditou em um ser poderoso que poderia salvá-lo dos perigos. Cresceu e descobriu que o mundo do além era apenas uma criação humana para iludir os homens, assim como o inferno incutia medo, forçando-os a obedecer e permanecer subservientes. A descoberta trouxe uma sensação alívio, de liberdade, embora houvesse tanta coisa ainda a exigir uma explicação. E ali estava uma delas. Aquela catalepsia apavorante.


3


―Não, agora já está passando dos limites. Terminou o jornal e teu pai não chegou. Alguma coisa deve ter acontecido.
― Ora, mamãe, notícia ruim corre depressa. Se tivesse acontecido alguma coisa ruim com papai já teríamos sido informadas.
― Sim, mas se aconteceu alguma coisa que não foi ruim pra ele e só pra gente?
― O que a senhora quer dizer?
―-Minha filha, você ainda não conhece os homens. Por mais que tentem ser bonzinhos, dentro de cada um existe um animal caçador, um predador sexual. Com esse tempo moderno de hoje onde as mulheres estão tomando a iniciativa. Eu confio nele, não confio nelas.
― Ora, se você confia nele por que esta insinuando?
―Olha faz mais de quinze anos que a agente vem numa harmonia de fazer inveja. Tivemos algumas briguinhas é claro, mas coisa leve que só fizeram tornar a reconciliação mais gostosa. Apesar de todo trabalho com a firma de segurança ele nunca deixou de chegar no horário e quando acontece sempre telefona como você mesmo sabe. Agora veja só. Acordou correu para o computador. Não quis almoçar. Avisei para ele que a comida estava na mesa e fui descansar como sempre. Com este tempo frio peguei no sono acordando quase de noite. Estava com sono atrasado. Pois bem, a mesa estava do mesmo jeito, ele não tocou na comida e ainda esqueceu o celular.
― Cadê o celular dele?
―Parece que está no quarto. Quando o meu chamou ouvi-o tocar.
―Vou dar uma olhada na agenda telefônica, talvez alguma chamada ou mensagem possa ajudar a encontrá-lo.
Abriu a porta devagar e teve um susto. A luminosidade da sala ofuscara-lhe temporariamente os olhos, de modo que ela viu um vulto sentado na frente do computador e não reconheceu o pai. O grito ecoou por todo o quarteirão. A mulher correu a tempo de ver a filha cair para o lado.
― Que é que foi?
Então ela reconheceu o marido petrificado.

 
Autor
ValdeciFerraz
 
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