Gê Muniz
TUDO VAI ACONTECER COMO ELE QUER
Boníssimo homem. Responsável. Compenetrado. Honrado. Trabalhador. Ao final do turno da fábrica, sentava-se no assento do seu carro e direto para casa. Sua amantíssima família, ansiosa, o esperava na sala. Ao chegar, jamais tocava em assuntos da profissão. Primeiro o banho. Punha um de seus únicos dois pijamas. Jantava um faustuoso prato de arroz e feijão, bife e salada. Às vezes, farofa. Lia o jornal ao mesmo tempo em que ligava a televisão para o noticiário. As mesmas matérias: economia, política, o resultado da loteria, notícias policiais. Ouvia atento enquanto lia, mudo, aos pigarros. Conforme o impacto da notícia, levantava vez ou outra a sobrancelha direita sob os óculos. Por último assistia com os filhos um seriado qualquer de TV. Não mais que da noite passavam-se as horas em dez, ele, já sonolento, dirigia-se à cama. Dava um boa noite gutural, pausado. Sumia quarto adentro. Em menos de cinco minutos se poderia escutar seu roncado. Como dormia, programadamente acordava. Ainda madrugada. Levantava-se sempre sem reclamar. Sequer um pio. Todos os outros ainda dormiam. Passos arrastados ao banheiro. A barba meticulosamente feita - antes a água aquecida numa velha panelinha de estimação. - Garagem. Cuidadosamente deixava o motor do auto esquentar. Depois de exatos dez minutos, em total silêncio, pegava estrada rumo ao trabalho. Repetia esses passos ritualisticamente de segunda a sábado sem uma ínfima falha de cronograma. Sua liturgia. Seu alicerce. Isso, o todo a dizer de sua vida. Houve um certo dia. - sempre há um certo dia - Dia desses dos mais banais. E um ato repentino. Cirúrgico. Drástico. Ele mudou algo de importante na sua rotina. Depois do trabalho, ao invés de casa, o rumo dele foi um bar. Alterou inexplicavelmente, assim como se altera o sentido de um botão de chave que de "para baixo" torna "para cima". Um reles "clic" supostamente tirado do nada. Daí em diante instituiu a si o novo e menos virtuoso hábito: Trabalho. Boteco. Chegada em casa de madrugada embriagado. A cama sem banho ou outros cuidados de higiene. O sono. Ronco, ronco e ronco. Nada alterou seus compromissos das manhãs com o serviço. Esse antigo ritual, assim como o novo modis operandi, eram de execução inatacável. Nada adiantou filhos chorarem; mulher espernear, ameaçar. Ele não ouvia. Não se emocionava com súplicas, com lágrimas. A impressão resultante era a de que ele resolvera matar-se homeopaticamente: a cada ardida golada de pinga; a cada dura jornada na fábrica. Se para ele a mudança ficou melhor ou pior, assim ou assado, ninguém nunca soube. Ele não tocava nesse assunto. Ainda é dessa forma que hoje tudo continua a acontecer. Harmonicamente. Perfeitamente. Estranho e normalíssimo jeito que ele mesmo se impôs. É dessa forma que será enquanto ele quiser, puder - ou viver.