Crónicas : 

Sonhos, solidão e o medo. Simples histórias de um hospital.

 
Parte um


Desde pequenina, tenho vários sonhos, alguns já concretizaram e dos quais vou falar aqui, mas ainda tem outros sonhos que não vou desistir de sonhar e até porque isso seria desistir de viver.
Estes dias vi uma idéia de um poeta e escritor sobre cada um de nós levarmos a nossa poesia aos lares, às creches e por ai fora, diria que fazer a ponte entre o que está sozinho com aqueles que podem dar uma virada nessa mesma solidão e abandono.
Para muitos até pode não significar nada de nada, outros significa tudo, absolutamente tudo, começam a voltar a viver e voltar a sonhar de novo, estranho não como um simples gesto abre as portas para a vida e a vontade de voltar a viver seja até nas recordações passadas, seja no desabafar o que mais magoa a sua alma ou até o medo da sua partida.
Um dia, eu estava num hospital, lembro que era a parte dos raios X e aquela entrada tão temida por muitos onde se fazem exames para ver a gravidade das suas doenças, seja cancro como outras das mais variáveis que nem adianta falar aqui..
Recordo as voluntárias da cruz vermelha, senhoras já idosas, algumas esposas de médicos, outras de advogados e outras de apenas estavam ali porque amava o que faziam ajudar, sem olhar a quem, não olhando ao estatuto e nem as condições de cada um.
Estava lotada, ainda por cima uma das principais máquinas, avariou, acumulando pessoas na porta como sardinhas ali enlatadas. Toda aquela área esta bonita, limpa, bem decorada, com bancos confortáveis e duas grandes TVs para que pudessem minimizar as duas dores.
Eu estava na parte longe da entrada, mas inquieta, escutando os gritos de uma senhora já idosa e sozinha, ali prostrada na maca, foi ao seu encontro e verifiquei que ela estava ali há horas, horas ali sem ter atenção de auxiliares, de voluntárias e de ninguém.
Revolta ver três das senhoras e as ver a conversarem, em conversa amena, com alguma dificuldade pelo chamado da senhora e nada, era pobre e só, não estava de recheada de jóias, não era chique e nem usava roupa de marca.
Lembro-me dos seus cabelos brancos, como a neve, seu rosto velhinho e enrugado pelos anos que a desgastaram, olhos bem castanhos como duas amêndoas e um sorriso aberto que há muito, eu já não via. Ela apenas precisava de um lenço, uma compressa ou algo que ajudasse a limpar a sua garganta e sua boca. Precisava de conforto, uma palavra amiga, um doce para a sua alma, apenas companhia.
Sosseguei a senhora um pouco, pedindo ajuda a uma auxiliar e a outra funcionaria da secretaria, para que seu piso (o da medicina interna) a viesse buscar, estava com frio e fome, pudera depois de estar ali mais de três horas era perfeitamente normal, o medo a invadia de ficar ali quando a noite viesse.
Perguntei a razão do seu medo, ela explica que tem medo da escuridão, que tem medo de fechar os olhos e não os abrir mais, ainda por cima ali, sozinha, o sono que não vem e que mesmo estando todos quase a dormirem ela escuta coisas e tem medo.
O famoso medo dos nossos idosos, este caso aqui foi abandono da família que a despejou num hospital e a entregou a sua própria sorte, ela foi retirada de sua casa e nem filha, genro e netos a visitam, ali foi deixada para morrer o pior era que ela estava a durar mais que era previsto.
Seu rosto completamente desfigurado no lado esquerdo com uma massa cinzenta disforme e já entrando ferida aberta, era algo pouco apetecível de se olhar, mas se fossemos nós, ali naquela situação? Como gostaríamos de ser tratados, com dignidade ou não?
Claro que sim, ficaríamos revoltados se alguém de afastasse de nós demonstrando nojo ao nos olhar. Com explicar a uma senhora que sua filha não vinha a visitar por a amar demais? Balelas não? Teremos que inverter os valores da verdade para a simpática mentirinha para acalentar um coração humano, já tão solitário e abandonado. Aqui a psicologia é apenas a esperteza do momento, tentar explicar que talvez a filha não tenha coragem de ver assim desfigurada e doente, todos nós sabemos que são balelas, mas sempre trajamos uma esperança naquele coração, que não produziu um ser humano tão hediondo e cruel.
Buscar sua crença para melhorar as noites que trazem a escuridão dentro de almas aflitas, almas que foram educadas no medo de irem para o famoso inferno...
Onde está o padre que devia fazer esse papel e ajudar aquela pobre alma que já estava mergulhada no inferno da vida?
A massagear seu ego ferido de ser afastado de uma paróquia, por envolvimentos com outras paroquianas novas. Poderá estar ali mofando, entregue aos destinos de outrem, se não ama o que faz como pode ele curar a dor de alguém? A dor da alma?
Afinal aquele foi para padre porque sua mãe assim o desejou, sendo de família pobre, seus votos foram a sua mãe e não a Deus, está tudo dito ou não?
Afinal foi tão simples confortar aquela alma, aquela linda senhora, a levar a uma viagem a sua fé e crença e buscar alguns anjos, santos e lugares mágicos, para que as suas noites sejam mais claras, mais amenas e mais suaves e que não entre a nostalgia e o medo na penumbra do hospital.
Valeu a pena pelo novo aceitamento da morte, porque o medo os devasta, os regride e os deixa sem chão e sem vontade de viver. Voluntariado é isto mesmo, transformar a dor, a ânsia, o medo e confortar os corações em amor e carinho.
Esta é apenas uma historia do meu iniciar, despertar para a dor que existe, para ajuda humana e ajuda de mim mesma, deixando de ser egoísta e mais carinhosa com os meus semelhantes.

Pausa para refletir!

Betimartins

www.betimartins.prosaeverso.net



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Betimartins
 
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Enviado por Tópico
PatríciaXimenes
Publicado: 17/07/2011 20:25  Atualizado: 17/07/2011 20:25
Super Participativo
Usuário desde: 20/10/2010
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 126
 Re: Sonhos, solidão e o medo. Simples histórias de um h...
" Quem tem um sonho não dança..."
Bela inspiração!
Parabéns!

Enviado por Tópico
Ghost
Publicado: 17/07/2011 21:17  Atualizado: 17/07/2011 21:17
Colaborador
Usuário desde: 09/04/2011
Localidade: Lisboa, Portugal
Mensagens: 1820
 Re: Sonhos, solidão e o medo. Simples histórias de um h...
Olá Beti, gostei muito do seu texto e posso até dizer que me emocionou.
Dói bastante ver as pessoas abandonadas em lares, hospitais, centros sem que uma única pessoa queira saber delas. Essas mesmas pessoas também já tiveram os seus feitos, também já viveram, já amaram, já sentiram... E ainda sentem!
Eu acho o voluntariado muito importante, e sei como uma palavra de conforto e de carinho pode fazer a diferença.

Não me vou prolongar muito mais.
Gostei bastante de ler.
Abraços e Felicidades.