"Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate"
José Tolentino Mendonça, A Estrada Branca, 2005
Quer por falta de aviso ou descuido, aconteceu-lhe. O karma que lhe fora destinado tinha destas singularidades: atingia-a quando mais esperava, contudo, com aquilo que menos esperava.
Desta feita, fê-la perder-se em amores, ela, Diana com seu arco e flecha em riste para que ao mínimo avistar dessas tumultosas ameaças à tranquilidade sentimental as pudesse eliminar antes que lhe devorassem a alma, famintas; ela, perdeu-se em amores de arco-íris e folhinhos cor-de-rosa, com intensidade pseudo-trágica. A pobre quase arranca o coração do peito sem saber que faça com o rubor que lhe assome à marmórea face; pois de todos os possíveis objectos de afeição e sublime adoração, tinha de o ser: ele.
Ele é um gaiato em alma, com sete pedras na mão e outras sete na boca, o descuido passivo no bolso, o seu brincar e existir é alquimia, a ousadia das chamas e o éden no coração que herdara dos anjos caídos; representando tudo quanto anseia ser e alcançar um dia, ainda que seja o oposto daquilo que a define, sim, um dia em que consiga soltar-se das grilhetas que lhe impõem ao ser.
Tornou-o então o seu Némesis de todas as eras, que mais daria agora para lhe lançar violentamente as mãos ao pescoço e
beber-lhe deleitosa o néctar divino do puro arrebatamento, somenos religioso de entre aquelas duas pétalas vivas, rubras e tépidas; sentir-se soçobrar com a realidade do toque desejado, e só aí, então, esborrachá-las demoradamente com seus pés de bailarina, calando-o até ao fim dos tempos. Ele, a quem súbdita e servilmente permite que lhe crave as garras no coração empedrenido, no mesmo fervor e devoção com que em retorno lhe cravaria um punhal nas costas.
Um dia, nem segundos breves nem minutos volúveis, um dia, fora quanto bastara para que se apercebesse que este desejo seria o seu fim. Sentia-se gradualmente agastada, deixando cair por terra tudo quanto outrora a elevara à imensidão mítica da sabedoria terrena.
O destruir da leda glória, que efémera sempre o será para toda a carne humana, que importa, somos o cosmos, o infinito, omnipresentes e omnipotentes, e já não falamos em tempo. Hoje, não é muito mais que uma baça sombra do que fora, bailando nas estações que nem folhas secas bailando no célere vento de Outono.
Não sabe o que a conduz ante aquele Apolo de barro e sangue, como ela. Não ousa tocar-lhe. Não ousa respira-lhe o aroma, sabendo que a deixaria em profunda embriaguez. Não ousa. Apenas olha o clarão que a engloba em alvura e paz à sua frente, apenas olha, fita, estando os restantes sentidos fechados do mundo restante.
Em casa permanece em silêncio, em contemplação dos tabiques que adornam o tecto que a protege, todos os dias, ao passo que sente o corpo tenso de antecipação por aquela miragem segregar ódio: o reverso da calma tempestade que estala de dentro para fora, espraiando-se liquidamente em redor. Ódio pelo homem que a despertara no desejo do inatingível, ódio por tudo quanto representa, ódio por se ver incapaz de adivinhar a entrada naquele forte, sagrando-a rainha, ódio por não ver a redenção nas suas mãos.
Ódio por si, resto de nada, indagando se algum dia deixará de a olhar como que a um painel translúcido, com aqueles olhos caleidoscópicos e a verá por inteiro e igual à sua imagem. Se algum dia para ele,será suficiente o pouco que possuí para lhe dar, ela, cristal quebrado pela agrura da vida.
Nada disto deixa transparecer quando acontece cruzarem caminho e olhares, unicamente uma trabalhada indiferença cordial, que oferece sem parcimónia nem pudor. Conquanto, ao vê-lo virar a esquina, promete a si mesma, que da próxima vez essa promessa não viverá mais um dia que seja, e não será indiferença o terá para lhe dar.