Poemas : 

Cirurgia

 
 
" Que horas são? Não te preocupes, não é tarde.
Foi mesmo a tempo."


(Bisturi. Procedimentos habituais de abertura.)

Ei-la: lacerada, arcadas sanguinolentas.
Ei-lo: exposto, carnal e naturalmente corado.

"Mas que é isso, então? Porque cobres a cara,
cravas a respiração fraudulenta na almofada?
Os olhos, cerrados, não embaraçam o tímido perpetrar da luz."


(Podia estar em pior estado, verdade.)

"E agora, abres os braços, assim. Isso.
É esse o sentido do vasto, naquela direcção.
Segue. Ali mesmo.
Sentes-te bem?"


(Um pouco de sucção, por favor.)

"O desconforto, passa? Sim?
Está bem. Sou capaz de o fazer, sim, sou capaz.
Vamos prolongar-nos aqui?"


(Não consigo aceder, será necessário um afastador. Segure aqui.)

"Mostro-te: não é difícil.
Não se podia possuír melhor momento para ser-se.
Foi o prometido. Vive. Dou-te este nada.
Tudo isso, tudo irá multiplicar-se. Por toda a parte."


(Mas que...Espalhou-se, por toda a parte.)

"Por toda a parte.
Marcas por toda a parte e lugar
e espaço e ser
e tempo, se necessário.
Pelo menos é assim que vejo.
O que indicam? Coisa nenhuma, lado nenhum. Estão."

(A incisão foi profunda demais. Desfaz-se nas mãos.)

"Não quero levantar-me.
A leveza prega-me docemente ao chão.
Já temos que ir? Vê, o que temos aqui?
Sou incapaz de contorná-lo. Vê. Reconhece-o.
Não me digas que é inevitável quebrar."


(Sistólica a 46, pressão a baixar. Está a ir-se.)

"Abandona-te, não fere.
Não é o que desejas?: união.
Quase lá, quase. Segue-me nesta transição.
Podes dar-me a mão, eu finjo que a seguro.
Sinto frio."


(Clampe. Vamos!)

"Onde estamos?
Alguma turbulência, não pouca.
Agarra-te ao que puderes.
Depressa.
É um choque frontal.
Que fizeste?"


(Merda. Óbito: quatro e vinte e três.)

"Consigues ouvir: o piano murmura através dos ontens...
Chegaste. Cheguei.
Quantas vezes olhaste para trás, menina?"

 
Autor
MEduarda
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