não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
3.
amarro as mãos e sinto o coração a bater e eu ali a olhar para os anos. anos de gostar. anos de orgulho. e eu apenas filho. ali. de mão dada. a equilibrar-me para não cair. como se estivesse a dar os primeiros passos em caminhos que ainda não foram feitos. só me restam os olhos – mergulho pelo tempo. o passado acontece como se tudo sobrevivesse naquele olhar – ao lado. ali sentado o meu pai sorri. só lhe faltam as palavras. está ali. tudo o que eu sabia dele está ali. o cair de ombros da idade. o braço que deixou de acenar. e até aquele sorriso que nunca desaparecia continua preso àquele bigode que é apenas uma linha branda a dividir a boca que se fechou com a dor dos olhos que falam esperança – apetece-me ficar aqui para sempre. tenho aqui tudo. até o que pensava ter perdido para sempre está novamente aqui. junto ao corpo que também envelheceu com a saudade dos abraços que deixei para trás. das palavras que desistiram de viver e já nos lábios voltaram para dentro da boca. não sabiam ainda que o tempo também se acaba – tudo acaba. agora sei que tudo acaba. e até este momento vai acabar – aperto as mãos com força. sei que um dia já aqui estive. conheço estas mãos. têm a forma de quando me agarras-te nos primeiros dias da vida – um dia acordei não as vi. estavam a trabalhar e eu sem saber parti para dentro de mim. sabia que era dentro de mim que havia um lugar onde podia falar sem ninguém me ouvir. um lugar que doía por nascer assim: sem ser nada de especial. era apenas mais um menino que falava sem querer ser ouvido. sabia que não podia dizer: sou teu filho porque fiz isto. não. não tinha nada para mostrar. não tinha nada para dizer. só tinha este sorriso que ninguém via por estar dentro do coração que escondi porque sangrava – sabes mãe. este coração está sempre a doer. não há nenhum dia em que não doa. um dia dói por ti . outro dia dói pelo pai. outro dia dói porque preciso lembrar que mesmo assim sou vosso. preciso resistir à tentação de esquecer a dor. há outros dias que dói por tu já teres netos. bisnetos. teres uma família. a nossa família mãe. os meus irmãos. os meus sobrinhos. a tua companheira da vida que está aqui connosco. e os teus filhos. nós mãe. o meu irmão e a minha irmã. nós todos. nós todos que fazemos um nome que me dói por não saber soletrar como sempre quis – perdoa-me mãe mas não sou capaz. não fui capaz de aprender o que tu aprendeste. o que tu fizeste. o que tu sempre me tentaste ensinar. nasci diferente. ando por aqui ainda sem saber como ser filho. bem sei que para ti não é importante. sempre irás encontrar uma razão para dizeres com esse olhos redondos iluminados: é meu filho e eu gosto dele assim. mas mãe há os meus filhos. e estes precisam de saber que o teu filho não soube dar à boca tudo o que tu merecias. eles precisam de saber que os avós foram a única razão para hoje terem um nome igual ao teu – prometo-te que um dia saberão dizer o teu nome e saberão sempre dizer: chamo-me assim porque os meus avós se chamavam assim e os pais dos meus avós também se chamavam assim. e só nós nos chamamos assim porque somos uma família. prometo – mas a tua carne já não resiste como antigamente. já não é igual. está cansada do tempo. está ali apenas para te proteger os ossos que já não são ossos. são raízes amarradas ao ar que respiro. e eu respiro devagar. não quero que saibas que o tempo passa a respirar. não quero que descubras que o tempo se faz das batidas do coração. quero sentir as tuas mãos dentro das minhas. quero amarrar-te para sempre dentro destas mãos que estiveram tanto tempo sozinhas. quero afagar a tua pele que é também a minha. e ver no olhar que afinal as dores que te dizem que estás a envelhecer não existem quando as mãos se amarram à vida – não desistas mãe. não expulses o tempo. ainda quero dizer-te outras coisas. coisas que ainda não aprendi a dizer. preciso de envelhecer um pouco mais. e tu também ficas mais bonita sempre que envelheces. e as palavras gostam sempre de se amarrar a gente bonita e o tempo está sempre a trazer conhecimento e talvez então aprenda a escolher as apalavras correctas. aquelas que não temem a voz. aquelas que querem uma última oportunidade para se tornarem palavras ouvidas – sinto-me diferente. olho para dentro dos teus olhos e quero ter coragem para te dizer o que sinto por ter as tuas mãos dentro das minhas. mas o coração bate tão depressa e as palavras são tão pequenas para tudo o que estou a sentir – não entendo. parece que um filho só sabe falar quando o coração deixa de bater – gosto do que sinto dentro. nunca o irei saber escrever – encosto a cabeça no teu ombro e ouço o nosso sangue a correr. corre como se dentro do corpo houvesse uma festa. agita-se. a pele treme. recebo um beijo. ouço: deixa cá ver um beijo meu filho. morro todo por dentro. caio para dentro de uma agitação de sentimentos e volto a ser quem sou. apenas um sou grande. só que agora já conheço o sorriso. e os olhos já não querem partir – encostei a cabeça. apenas uns segundos. não tive coragem de dormir com a cabeça no teu colo. tive medo de que quando acordasse não lembrasse mais as tuas mãos. ou então que alguém me acordasse a dizer que tudo não passava de um sonho – não queria dormir nunca mais. queria ficar ali até que o sol mostrasse um novo caminho para outro mundo onde não existisse dor. nem partidas. nem beijos por dar ou palavras por dizer – ainda tens tempo para me ensinares a dizer todas as palavras que mereces – foram tantos anos mãe e eu sempre imaginei que os corpos não partem. e as palavras não faltam e o tempo resiste. é tudo mentira mãe. a vida mentiu-me e aqui estou também eu a envelhecer. e nem sei o que fazer ou como dizer agora tudo o que falta. e eu desesperado – voltamos para casa de mão dada. deixei o meu coração no teu corpo a bater. o mesmo sorriso. afinal estávamos nas nuvens. voávamos junto ao céu. tu e eu juntos para sempre – esta viagem não tem fim. ficará sempre no céu. mesmo depois da terra alcançar os pés – e para sempre guardarei a tua forma de dizer: estou feliz. esta viagem nunca acabará – a forma de dizeres que ficaríamos para sempre no céu. nenhum escritor. por mais famoso que seja. será capaz de o dizer como tu disseste - - quando deus me levar. quando estiver de partida para o céu vou pensar que estou a voar. a andar de avião – eu também mãe –