não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
2.
aqui estou. parado. a olhar para os anos nos olhos de quem me gosta. e gosta há tantos anos dentro deles – como é possível gostar de alguém como eu durante tanto tempo. dizem que é amor. dizem que gostam de mim por amor. e eu a olhar o mar e as casas com luzes e gente dentro que nunca vi – saio de dentro das luzes da gente e apenas fico próximo do que tenho de mais belo: o meu mar. um mar que não tem fim – olho. sei que só este mar gosta de me ver. gosta dos meus olhos assim como são: quase redondos. quase castanhos. quase transparentes. quase pêndulos num corpo que não cai. um mar que me ama mesmo quando fecho os olhos por ter medo do que sempre vejo sem querer – estes olhos são castigo de deus. nunca estão em silêncio. engolem o futuro. dobram o corpo para um tempo que ainda não chegou. tornam tudo em hoje – o mar está em silêncio. os mares sempre estão em silêncio. as bocas fechadas guardam as últimas palavras que nunca foram ditas. temos só os olhos que falam devagar para enganar o tempo. para enganar as pálpebras. para enganar todas as noites que ainda faltam. para enganar os gritos há tanto escondidos. ninguém chora de olhos abertos. ninguém chora com olhos feitos palavras que nunca o foram – ouço-me a crescer nas marés do tempo que me trouxe até ao dia de hoje – porque hoje é o dia perfeito para se ouvir tudo. até o silêncio deste mar – ouço o primeiro choro. a primeira palavra. a primeira fita. o primeiro medo. a primeira oração. a primeira reprimenda. a primeira bênção e o tempo sempre a ir e a vir com mais palavras. tal como as marés – dentro deste ir e vir o tempo: implacável. inflexível. imperturbável. inalterável. nada do que está feito pode ser refeito. nada do que está dito pode ser apagado. nada do que me trouxe aqui poderá voltar para dentro deste mar para voltar a nascer – assim sou feito de água. sal e olhos castanhos seguros ao tempo que não foi capaz de construir os corpos por onde passei. tal e qual um corsário do passado. roubo os lugares na procura de tesouros que nunca encontro e pela noite. guiado pela estrela polar. parto vazio para uma imensidão de estrelas que não conheço – cambaleio dentro de mim. o mar está ali. tudo sempre esteve ali. eu estou ali. dentro dos olhos que reluzem como reluzem todos os tesouros – olho. hoje teimo o olhar. o mar está tão calmo. tão sereno. tão particular. e eu ali completamente perdido dentro de tudo o que os olhos vêem – os olhos são agora pequenos para tanto mar. e eu ali. preso a um corpo que não pára de crescer. dentro daqueles olhos. sinto-me enorme – a noite continua a cair. e os meus olhos sempre a ver o que nunca viram. de outra forma que não sei dizer. há agora pequenas coisas para contemplar. vejo as mãos enrugadas. a descansar nas pernas. o corpo curvado teima em descobrir no chão ainda caminho para fazer. longe. e na cara redonda cruzam-se pequenos caminhos feitos pelo tempo de quem sabe que é assim que a idade embeleza a face – os olhos. ali. mesmo ao pé dos meus. redondos. transparentes. feitos de sol. deixam cair palavras como gotas de orvalho. numa manhã de primavera – nunca tinha visto olhos chorarem assim palavras que são abraços. beijos. carinhos de mãos que me apertam. sufocam e chamam: filho estou feliz. e eu agora preso para sempre a um tempo que nunca mais terá futuro. vou ficar aqui para sempre. não quero nunca mais o amanhã nem outro hoje – oh meu deus. como o mar hoje está bonito. espelham os olhos mais bonitos do mundo e na dor do tempo teima em levar para o amanhã um sorriso que não quer acabar nunca – sorrimos os dois. hoje somos um sorriso que nos abraça para sempre – estou feliz. sinto-me a crescer. cresço sempre que aquelas mãos afagam as minhas mãos. estas que guardam dentro de tudo o que tenho – sinto-me tão grande por saber guardar estas mãos dentro das minhas – já não me lembrava do dia em que pela primeira vez guardei aquelas mãos dentro de mim – há agora um outro tempo. ainda que as casas caiam em cascata e a luz seja cada vez menor. apesar de já só haver luz dentro das janelas. é noite. nascem as estrelas e a escuridão deixa de ser escuridão. também em mim a noite tornou tudo mais claro. tenho estas mãos dentro de mim e nos olhos um mar que não termina nunca num dia de abril. sou rosto. sorrio. nos olhos o peito do mundo. o meu. e o leite corre. corre por cada canto. e os olhos sempre a encontrar os olhos que me dizem: és meu. e eu sei que sou desses olhos porque os olhos riem. riem porque sou para toda a vida – num dia de abril tornei-me sou – palavra mais estúpida – sou – sou porque sou tudo para os olhos que gostam – sou. como é bom ser apenas um ser que é mais do que uma palavra. um ser que ainda não disse nada. só chorou. e já sou tanto aos olhos de quem me vê. sou para sempre – agora sei: nesse tempo apenas os olhos me viam pequeno. mentiam. e eu sempre disse que os olhos não mentem. errei. aos olhos de uma mãe mentem. sou grande. de um dia para o outro deixei de caber na barriga de onde nasci – ao meu primeiro choro cresci. ao meu primeiro gesto cresci. ao meu primeiro banho cresci. ao meu primeiro sono cresci. depois toquei a pele. cresci. o primeiro leite. o primeiro abraço. o primeiro sorriso. a primeira palavra e eu sempre a crescer. sempre a crescer. cresço sem nunca parar. cresço e sou. sou único aos olhos de quem me quer assim como sou – os corações batem. sinto-os. batem como se fossem um só. com a mesma força de viver todo o tempo que resta – preciso de ouvir este bater. toda a minha descendência precisa de ouvir este bater. este caminhar para a frente. este arrastar da vida na nossa vida –