[Esconsas e lúbricas vigências do sertão]
I
É noite alta.
O ruído de suas passadas
Ecoa, lúgubre, no ermo da rua:
Tloc, ploc; tloc, ploc; tloc, ploc...
Em lenta caminhada,
Eles retornam para casa.
Vadios!
Assim chamam a essas noctâmbulas criaturas
Cujas passadas desacoitam
Tristezas em quem mal dorme.
No entanto, seus corpos têm marcas,
São pisaduras feitas pelos arreios!
Como podem ser chamados de vadios,
Se após um dia inteiro de mourejante labor,
Apenas vagueiam, inofensivos, pelas ruas,
Um merecido descanso para quem
Provê o sustento de bocas humildes?
Vadia é a minha mente sem norte
Que vagueia por mundos fantásticos,
Quando passam os cavalos da noite,
Compassando antigas lembranças na monotonia
Dos sons de suas ferraduras no basalto
Da rua mergulhada num silêncio de sombras!
Ao amanhecer, esses cavalos
Estarão aprestados para outra faina,
A dura peleja até o pôr do sol.
Então, novamente estarão nas ruas,
Soltos, buscando, com suas caprichosas mordidas,
O capim mais difícil de atingir,
Aquele que cresce entre as fendas das pedras das sarjetas.
II
Criatura de tantos vagares,
Vai pela noite escura, sôfrego,
Remoendo o seu lúbrico sonhar.
Seus olhar trespassa, ansioso,
Janelas de onde escapa uma luz sugestiva de...
E os seus passos, objetivamente lentos e incertos,
Subterfogem intenções, disfarçam ardores.
O objeto de seus desvarios
Surge na esquina... mas, ele hesita... será?...
E... ela escapa-lhe por entre
As brechas da sua indecisão!
E assim, cavalo errante na escuridão,
Ele continua a vaguear pelas ruas.
E, mais tarde,
O cavalo, recolhido
Em sua cocheira de sempre,
E no silêncio de um olhar erroso,
Estará a esmoer, lentamente,
O ausente capim apetitoso
Que a sua pusilanimidade
O impediu de saborear!
III
("...No curral recolhia-se também todo o gado que acha nos danos, isto é, pastando por vinhas e hortas alheias." — Antiga regra dos Concelhos de Portugal.)
Cavalo perdido,
Cavalo sem rumo,
Cavalo vadio na rua,
Termina no Curral do Concelho,
Ou no pasto rapado do matadouro.
Em um a regra, no outro, a morte.
IV
[A entrega ]
— Cavalo esfalfado, de onde vens?
— De vaguear pela noite e campear as fêmeas!
— E por acaso, em alguma época foste diferente?
— Não; cumpro a sina de todo cavalo errante,
nunca fui diverso do que sou!
Sempre estive nesta carreira insana,
Que nem eu mesmo sei se é apenas busca do vazio,
Ou puro desespero de possuir em cada uma delas
Aquela que sempre me escapa!
— Por isso, na busca do ser que nunca tocas,
Corres atrás de impossíveis deusas,
E erras a tua vacuidade pelas ruas!
— Sim; sempre na noite estarei...
Resvalando meus passos por vielas e becos,
E sonhando com o imarcescível amor,
Aquele amor que faz latejar o meu corpo!
— Nisso não há mistério, segue em teus vagares;
Porém, a tua boca não fala pelo teu corpo
Que, de fato, não te pertence! Vai,
Entrego-te ao demônio que te habita!
V
Se eu pisar no capim alto
Muitas vezes,
Ele vai acabar marcando a minha passagem.
Variar as andanças,
Negacear os perigos,
Não deixar vestígios por onde ando!
VI
O meu sexo lateja-me
Pelo corpo todo,
Ardo-me por estar
Dentro daquela
Que vive dentro de mim.
Ventas abertas,
Olhar atento e sôfrego,
Troto pela noite adentro,
Em perfeita calma aparente...
Pastejo a noite,
Farejo a noite na grande invernada...
Sinto no ar o almíscar das fêmeas
E sigo minha solitária cavalgada...
VII
A úmida fêmea
Esparze o almíscar, trama finos ardis,
Campeia na noite o par que lhe falta!
Mulher caça a gente é na diagonal,
Nunca por retos caminhos,
O seu olhar é oblíquo, recurvo,
Lampeja rápido por entre olhares!
Fêmea natureza de ser?
Quem é que se arrisca a sondar
A centelha do desejo que faísca nos seus olhos?
[...e da velha Minas, verte o [meu] mundo, sempre e sempre]
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Da minha coletânea "Cavalos da Noite", ilustrada por Paula Baggio