[Para Ana]
... Ah, eu acho que vou mesmo "esquecer" de lhe contar a história do ridículo que eu fui daquela vez... Saramago tinha razão: “...o ridículo é como uma queimadura por dentro. Um ácido em cada momento reavivado pela memória, uma ferida infatigável”... Algumas décadas já se passaram, e aquele [ridículo] ainda me queima, até hoje!
Por ora, estou mesmo é preocupado com o meu trenzinho de lata... mais uma lembrança que resgatei assim, de um breve sonho da noite passada. O meu trem tinha cinco vagõezinhos, cor ocre, janelinhas pintadas de marrom, a locomotiva era uma maria-fumaça, e tinha até o compartimento de lenha!
Mas o curioso é que não me deram os trilhos, eu brincava com ele na terra mesmo! Imagina... eu passava horas sob a goiabeira do quintal do chalé amarelo, puxando o trenzinho de lata... fazia pontes com gravetos... Os vagões eram de passageiros, não de carga!
Ah, esta lembrança estava sob cinzas, parece... tenho de assoprar para ver melhor... Sabe que eu sonhei que brincava [novamente] com o meu trenzinho?! Agora, você sim, é que vai achar-me, doido, infantil, sei lá... Sabe, eu acho que a lembrança veio no sonho por que eu lhe falei dos trens lá em Araguari...
Todos os trens do mundo são menos importantes que o meu trenzinho de lata... pois o meu trem passava sob a goiabeira, atravessava a ponte de gravetos, e partia, do quintal do chalé amarelo, partia de Minas, sim, mas partia do MEU quintal... para o mundo!
Puxa vida... custei a arrancar esta lembrança lá do fundo! Quando eu morava nos USA, a saudade me fazia sonhar com muitas cenas da minha vida no Brasil — a fazenda Barreirão, o chalé [um dia, minha cabritinha caiu na privada de buraco... quase morre!], mas nunca sonhei com o meu trenzinho de lata, nunca!
E agora, o trenzinho voltou... e a goiabeira também! Mas esta sempre volta, sempre... ali, encostada no tronco da goiabeira, ficava uma pedra onde minha ia Lica se sentava para ser benzida pelo Seu João Vermelho... eu me lembro... ele falava assim: "vim descendo rio abaixo, quando vi Nossa Senhora em riba da pedra verde!..."
E o que mais ele dizia... ah, só se uma hipnose me ajudar a buscar! E o que ela fazia durante a reza?! Soltava uns puns sonoros, pois o Seu João, com seus 105 anos, era surdo... nem ouvia... e eu pensava: se ele está falando com Deus, então não vai mesmo ouvir um pum!
Ana, eu vou crescer, ah, se vou! Os sonhos é que não deixam... à noite, eu crio asas, eu voo longe, longe... aí, eu me recrianço!
[Penas do Desterro, 25 de junho de 2011]