Lembro-me do dia que casei e da brancura que com ele veio. Mas era um branco nauseante, pálido, acho eu, palidez de morte dissimulada no vestido nupcial. Era adequado, e ninguém quis ensinar que era um aviso a toda a estupidez juvenil que nos mora no espírito, e como podia eu adivinhá-lo, senão no rescaldo dos corropios sorridentes e das febres de sexta à noite. Hipócritas. Calaram-se todos, para sempre, e fecharam os olhos ao passo para o abismo.
Lembro-me ser Setembro tardio,e o roseiral da minha sogra estava em flor, debaixo de um sol cálido e tenro. As rosas iridiscentes foram cortadas mais tarde nesse dia, para que me acompanhassem capelinha abaixo. Invejei-as. A minha mãe não me ensinara a ser flor. A curvar-me elegantemente perante a mão que recolhe, sedutora, aceitando já o inevitável, o corte umbilical, o cessar da seiva pulsante, o fim. Então cresci agreste.
Mas nesse dia fui flor, ainda assim, a mais bonita, mais ainda do que as que levava, curvando sem saber ao quê. E quando soube era tarde demais.
Vinte anos volvidos. Vinte anos, fugidos desalmadamente, levados com tudo aquilo que julgava o melhor.
E hoje. Hoje, como um outro hoje qualquer, depressa mulher, que és tu o sustento desta casa, tu e o teu emprego das nove às cinco, mais os biscates que fazes: biscoitos, bolos e salgados, rissóis e croquetes, sete euros dúzia e meia.
Mexe-te mulher, anda mulher, a rapariga está quase aí para jantar, deixa lá os lençóis e o ferro, fazes depois que eu deixo, mas não percas tempo mulher, tu e só tu, em todo o teu nome e languidez corporal, deus meu, que seria de nós sem ti.
Eu digo-te. Seríamos outros quaisquer.
Hoje, como outro hoje qualquer que tem vindo a preencher pobremente a existência, atirou-me com essa constatação insípida à cara. Desprovida de - já nem conheço o emprego de ternura - qualquer respeito, pelo amor da tua vida, pela mãe dos teus filhos e avó dos teus netos, pela rapariga de saia travada de cor azul-verde-marinho na estação de São Bento e caracoís ferrugentos à chuva ; nem pelo amor de Deus, e enterrando as mãos espadaúdas nos bolsos, gira a três quartos desenhando as suas costas no horizonte visual, contra a luz baça que nasce da sala.
E sela-se o contrato. Com um beijo breve, que com o passar do tempo adquiriu um sabor acre, duvidoso, envelhecido, áspero. Sela-se a certeza de que para si será sempre desta forma: tu fazes -
- eu descanso, eu que sou doente e parasita e estropiado, vamos lá mulher, outra vez, carrega-me que estou cansado, de ser o pilar desta casa, o abrigo lento de todas as horas, a engrenagem principal, vá lá mulher, outra vez, prometeste em frente ao Senhor e à Santa Maria da Sé que assim o farias, até que que a morte nos separe, até que os meus dias se finem.
Em alturas destas, a memória da minha avó assalta-me o espírito. O seu andar era desalinhado, mas a sua agilidade fazia com que ondulasse dentro das passadas. Nos dias em que dobava as meadas de lã, enrodilhadas, resgatava uma pequena lata laranja-tostado de uma arca antiquíssima em mogno, que existia no seu quarto, e passava-ma para a mão.
Pega cuca, guarda-me esta latinha, que é para não ma tirarem.
A lata continha bolachas, duras, duríssimas, com um leve aroma a limão. Deitava-me escondida no seio fresco e macio dos prados de Coura, a mordiscar limas , como chamava às bolachas, e a desencaminhar carreiros de formigas com pequenos ramos, até que o meu umbigo inchasse de redondez orgulhosa.
Muitas vezes entregava a lata vazia, para receber um olhar de ternura daquela presença tão querida, e um
Mas que chatice, a minha latinha está vazia, quem ta tirou cuca?
Ó vó, eu não sei, adormeci.
Ainda assim, o seu conteúdo era restituído de "roubo" em "roubo", para grande contentamento meu. Sei que não se importava, desde que pudesse ditar a costumeira reprimenda fingida, com um sorriso cuja cor não esforçava por esconder.
Contrariamente às tradições, foi ela quem me conduziu ao magistral altar. E disso sim, lembro vívidamente. No momento em que me deixava entregue, ali, só, no topo da escadaria, apenas me olhou. Tristemente, pareceu-me. Sofridamente. Amorosamente. E disse-me, esticando-se o mais que podia e que as suas pernas, magríssimas, trémulas e corrompidas pela idade, lhe permitiam, em direcção à minha face. Senti-lhe o característico cheiro a sabão azul e carinho. E disse-me:
Se algum dia te perguntarem como se pesa o cansaço, só haverá uma coisa a dizer. Pesa-se em anos.
E retornou lentamente ao seu lugar. Nesse dia não dissera nem mais uma palavra. Uma semana depois, chega a notícia que decidira adormecer indefinidamente. E as suas palvaras ecoaram, como num salão despido.
Nunca as entendera, à medida que perdiam a sua sonoridade.
Hoje, como outro hoje qualquer, de uma vida qualquer, atingi o seu sentido.
Mas deixa lá isso mulher, esses dias já se foram, e não és senão da realidade.