Crónicas : 

CORPUS CHRISTI

 
CORPUS CHRISTI
 
Final de feriadão - Corpus Christi. Estávamos na entrada da Rodoviária Novo Rio, eu, minha amiga e minha afilhada. Aguardávamos uma carona combinada para minha amiga retornar à sua casa no interior de Minas Gerais. Eram por volta de 09 horas da manhã e, enquanto esperávamos, o papo girava em torno do final de semana agradável e dos planos para a semana que iniciava.
Eu observava tudo a minha volta – coisa não muito comum a mim. Sou pessoa que normalmente concentra-se nos acontecimentos mais próximos, com muita facilidade de abstração. Mas neste caso, com minha amiga e minha afilhada estando sob minha “proteção” em um ambiente como o Rio de Janeiro, todos os meus sentidos estavam aguçados.
Foi quando percebi uma senhora saindo de um táxi com três malas grandes e várias sacolas cheias de brinquedos. O táxi havia estacionado um pouco afastado da entrada da rodoviária e, como a senhora não estava acompanhada, via-se claramente sua dificuldade em conduzir toda sua bagagem. Vimos então um adolescente aproximar-se dela; roupas simples – camiseta e bermuda - pés descalços. Em um dos pés ele tinha manchas brancas, como aquelas de vitiligo. Ele a ajudava a carregar seus pertences. Os dois caminharam juntos até a entrada do terminal, bem a frente de onde nós estávamos. Ela simplesmente deixou o rapaz tomando conta das malas e sacolas e dirigiu-se novamente ao táxi. Não consegui ver o que ela fez pois confesso ter ficado atônita com aquela “aparente confiança” dela por um desconhecido – eu não parava de observar a atitude do garoto junto à bagagem. De repente, surgiu um segurança local e pegou com brutalidade o braço do menino arrastando-o para fora da Rodoviária e dizendo alguns impropérios. O menino xingava o guarda, cheio de raiva.
Neste meio tempo a senhora retornou do táxi e, normalmente começou a pegar as sacolas – nós apenas a observávamos. Ela dirigiu-se a nós e perguntou se poderíamos “olhar” suas malas até que ela levasse as sacolas até a plataforma onde ela embarcaria para Teresópolis. Eu disse a ela que não havia problema algum mas que estávamos esperando um carro a qualquer momento e que, se o mesmo aparecesse, nós precisaríamos abandonar as malas ali mesmo. Então perguntei como se não soubesse: - A senhora está sozinha? Ela respondeu: - Eu “sou” sozinha. E num ímpeto eu respondi: - Não é não! Ela retrucou que a plataforma “era logo ali” e saiu sem esperar que eu dissesse mais alguma coisa.
Logo em seguida ela voltou e apanhando suas três malas me disse: - Viu? Eu não disse que era rápido? Então perguntei a ela se havia dado algum dinheiro ao garoto que a ajudara. Ela disse que não com um tom de “claro que não”. Eu então retruquei que ele a havia ajudado a carregar as malas até àquele ponto e que ficara tomando conta de suas bagagens enquanto ela resolvia sua corrida com o taxista. Ela simplesmente olhou para mim e disse que ele só havia carregado suas bagagens durante uns poucos metros – senti uma certa desvalorização pela atitude do garoto. “Mas ele não tinha obrigação de fazer isto....” – eu disse. No que ela retrucou, já encaminhando-se para a plataforma: - Nem eu tenho obrigação de fazer o que estou fazendo – e apontou para as malas. “Mas isto é algo muito maior!” Agradeceu-me e pôs-se a caminhar com dificuldade carregando suas malas.
Eu e minha amiga ficamos comentando aquela atitude. A forma como ela havia considerado a atitude do menino que, em momento algum, fez qualquer movimento no sentido de lesá-la. Sabemos que a Rodoviária Novo Rio é um antro de assaltantes, daqueles que puxam as bolsas, saqueiam carteiras dos bolsos e saem correndo. Seria mais do que comum algum destes assaltantes ou meninos de rua tentar algo contra uma senhora só e cheia de bagagens.
Aquela atitude havia me soado mal. Isto porque apesar de saber dos perigos que o Rio de Janeiro oferece, eu entendia que a lei da troca nos relacionamentos humanos, em qualquer nível, sempre ensejava um valor. Afinal, ela não fora ajudada compulsoriamente – ela permitiu esta ajuda. Na porta da rodoviária há diversos carregadores cadastrados que podem ser contratados em caso de necessidade. Ou seja, se aquela senhora quisesse realmente pagar por aquele serviço, ela o teria feito. Mas não. Ela considerou a atitude do menino uma “gentileza”. Ora, se eu a tivesse ajudado, até entendo. Mas um garoto, todo roto e com pés descalços? Para mim ficou claro que ele queria um trocado. E ele nem teve tempo hábil para pedir-lhe algo porque fora expulso do terminal antes que ela voltasse para resgatar sua bagagem.
Comentávamos sobre isto, eu e minha amiga quando fomos surpreendidas pela tal senhora novamente dizendo ter perdido sua carteira. Ela estava com a bolsa toda aberta, e procurava sua carteira. Estava trêmula e não entendia o que havia ocorrido. Dizia atordoada que não sabia como iria sair do Rio porque todos seus documentos e dinheiro estavam nesta carteira, bem como seu celular – e andava de um lado para outro. Eu estava perplexa. Ela finalmente afastou-se, mas antes parou em frente a mim e disse: - “eu devo mesmo estar para receber uma grande dádiva de Deus para isto ter acontecido!”
Eu não tive tempo nem para comentar nada (e nem o faria). Internamente minha reação não fora outra senão rir. Rir sim. Não da situação da senhora. Passar por aquilo é algo tétrico. Eu mesma já me vi nesta situação uma vez quando tive minha bolsa rasgada no metrô de São Paulo. Fiquei sem nada. Tive que ligar para um amigo e pedir dinheiro emprestado. Ri porque ainda me surpreendo com o pensamento humano que insiste em achar que “deus” é responsável por tudo e, pior ainda, que temos que sofrer muito para depois sermos muito felizes. Ai! Partindo do princípio de que somos responsáveis por cada milésimo de nossos atos e pensamentos, talvez seja fácil entender porque tantas pessoas são infelizes na vida.
Eu e minha amiga ficamos ali, ainda aguardando a carona, discorrendo sobre aqueles acontecimentos tão rápidos como um relâmpago. Como a vida nos brinda como ensinamentos a todo instante... Cabia a mim analisar tudo aquilo? Teria eu capacidade para entender? Lógico que não. Eu não conhecia a senhora cheia de bagagem bem como o garoto com pés descalços que tiveram uma interseção naquele terminal rodoviário em uma bela e ensolarada manhã de domingo. O que consegui ver e entender foi apenas e tampouco através de minha limitada visão. Mas foi este o ensinamento que absorvi. E tentei manter-me isenta de sentimentos quanto aos acontecimentos.
Mas pensava. “Será que, se ela tivesse outra disposição com relação àquele menino, e ao pensar em recompensá-lo pela ajuda, em um movimento de procurar sua carteira, não daria falta da mesma a tempo de não perdê-la? Teria ela esquecido a carteira no táxi ao efetuar o pagamento? Questionamentos cujas respostas jamais terei. De qualquer forma, aquele enredo me “enredou” – e aqui estou. Tive que escrever.
Ao sair da rodoviária, já tendo embarcado minha amiga e minha afilhada, vi o rapaz novamente fazendo exatamente o que já havia feito antes. Ficara claro para mim que ele não era “gentil” por natureza. Ele precisava mesmo de algum dinheiro. Normal. Seja para o que fosse. Internamente, um pensamento assaltou-me e pensei por um instante em recompensá-lo pelo “suposto” julgamento indevido que senhora cheia de bagagens, sem documentos, sem dinheiro e “só” havia feito. No entanto uma voz logo veio e disse: - “não se envolva com este episódio de cuja vibração você não pertence. Não cabe a você definir justiça ou injustiça. As pessoas não se encontram por acaso.” E segui adiante caminhando em direção ao ponto de ônibus. – “preciso planejar minha semana”.



Faze o que tu queres será o todo da Lei.
Amor é a Lei. Amor sob Vontade.

 
Autor
Ravendra
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1998
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