Enfrento o mundo e fecho certas memórias onde elas não me possam encontrar e ocupo-me com o tempo para que elas não encontrem caminho para me visitarem a mente. Se a mente não o sabe, o coração não o sente.
Como arrumo as memórias em partes de mim e espero que fiquem esquecidas, arrumei hoje também roupa velha que encontrei perdida. Num dos bolsos de umas calças rotas encontrei um papel. Abri-o e li o teu número. O teu nome.
E então, as memórias desceram-me ao coração em fúria e bateram-lhe. Ficou tão pesado, cheio de fragmentos do passado que conservei nas partes mais profundas que tinha medo de visitar e que, conservados, me vieram tão vivos como se fosse apenas ontem.
Segurei aquele papel que tinha sobrevivido aos anos nas minhas mãos que tremiam. Nada me rodeava sem ser o silêncio quebrado pela minha respiração que se tornava veloz e mortifera.
Sustive-a por uns segundos. Voltei a mim, lutando com as memórias que me afundavam e tentando vir à tona.
Desviei sorrateiramente os olhos para o telefone, ali à minha desposição. Acho que, de certa forma, me esqueci da tua voz. Mas não do quão quente ela era.
Pergunto-me se ela hoje ainda me poderia aquecer como antes aquecia.
Afastei-me de todos esses pensamentos de te voltar a encontrar, recusei que me tomassem. O que serveria isso agora? Já estamos em caminhos diferentes, já não somos quem foramos. Prefiro então deixar-me ficar com estas memórias que, apesar de tudo, recuso.
Relembrei-me das nossas conversas de horas. Trocavas-me toda e sinceramente, nunca me senti tão erradamente perfeita.
De repente, senti algo que não estava certo. Senti aquele cheiro que não pertencia ali, pertencia sim a um passado um tanto distante. Mas ele veio e entrou sem bater à porta. Sentir o teu cheiro de volta desenhou-me um sorriso no rosto enquanto lutava com a lágrima para que ela voltasse para donde tinha vindo.
Dormíamos de dia, vivíamos de noite. Apenas um do outro. Nunca conheci ninguém como tu.
Aquelas noites de Verão em que apenas nos deitávamos às seis da manhã venceram-me numa luta que pensava conquistada.
Nunca foi tão difícil lutar com ninguém como é comigo mesma.
Lembras-te de quando nos sentámos e apenas ficámos ali, a ver o nascer do Sol depois de uma noite longa de risos e piadas que apenas nós entedíamos? Eu ainda não me esqueci.
"É lindo", lembro-me de te ouvir dizer. E era. Talvez o nascer do sol mais bonito do mundo. E nascia apenas para nós dois, ali sentados.
Diz-me, como é que chegámos aqui? Como é que tudo se destruíu? Acho que foi tão sorrateiro, tão lento que até nos passou despercebido até ao momento em que olhámos para trás e nos confrontámos com este vazio silenciosamente angustiante.
"Onde fomos?", "Onde estás?", "O que somos hoje, ou melhor, o que és, o que sou? - agora, em diferentes direcções?"
Pergunto-me.
Sinto falta das tuas palavras, de quando me dizias que me adoravas.
Já se passou mais de um ano e parece que nos fomos com o tempo. E o mais assustador é saber que o tempo não volta. E se ele não volta, com certeza que tu também não.
Então, fecho-me aqui neste quarto, agora sozinha, ao ouvir todas aquelas músicas que me fazem lembrar de ti e luto com as memórias de tempos que adorei viver e que hoje desprezo por não poder ter de volta todas as palavras que me matam de desejo.
Choro agora o que não contei ao mundo e que escondi de mim mesma. Mas não faz, vou deixar as lágrimas dominarem-me hoje.
Quando a coragem decidir voltar, então elas pararão, levantar-me-ei do chão, limparei os vestígios da minha tristeza, pegarei em todos estes momentos mortos e fechá-los-ei, desta vez, à chave.
Laura Justino
LAURA JUSTINO