não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
cinema – tenho os olhos fixados na tela. as imagens caem como pedras – do som nada sei. talvez seja filme mudo ou as bocas de barro envernizadas costuradas a tempo feito de silêncio fino – e o meu corpo ali. sentado via tudo o que havia para ver – de frente vê-se sempre tudo. já não há passado. tudo está para a frente. sem ouvidos. não tenho que os levar comigo ao cinema – não sei se há silêncio. só sei que há gente com os olhos postos lá à frente – nenhum corpo brilha. estão apagados. suponho que se apagaram com as lâmpadas quando o filme deu cor a uma tela que ainda há segundos era branca – nada havia naquela tela. não havia vida. não havia esperança ou dor. havia branco. apenas um branco de pureza – naquela tela só há tempo para o futuro – rompe a fita. os corpos sentados desequilibram-se. uns tombam para o lado outros para outro. isto é. uns para a direita outro para a esquerda. mas nenhum para a frente ou para trás. isso não. tudo que está para trás já passou e para a frente ainda não chegou – o maquinista sempre atento à vida dentro das fitas. sabe desde há muito tempo quais os momentos críticos de uma cena – emenda. corta de um lado um segundo e dois segundos do lado oposto. remenda. inventa um novo momento. um momento desigual para um filme que deveria ser sempre igual – mas o filme nunca mais será como antes – que são três segundos na vida de uma fita de cinema – os corpos voltam-se a centrar nas cadeiras. respiram fundo. e tudo volta ao normal – também é assim que unimos a vida quando não estamos no cinema. remendamos e seguimos. seguimos porque assim deve ser – toda a gente olha em frente. silêncio – há agora na vida um milésimo de segundo que não encaixa noutro milésimo. um degrau quase imperceptível – nunca ninguém caiu num degrau que nunca chega a ser degrau – ninguém quer saber nada se nunca passou do nada. ou se é degrau e se tropeça ou então não se é nada. como uma tela de cinema branca. um branco de nada – perdi-me. já não sei se falo da vida ou do filme. não parece importante. afinal todas as vidas são feitas de cortes e emendas – tudo prossegue. tudo passa. e neste corte imagino como tudo podia ser diferente se o corpo não nascesse com nome. não era preciso ouvir. ninguém dizia: sampaio estou aqui. sampaio como vai a tua vida. esta gente obrigatoriamente tinha de falar de boca aberta. e eu respondia também de boca aberta: está tudo mais ou menos. tenho uma pedra num rim. podia ser pior – já sabes o que aconteceu ao hernâni. deu-lhe o nó na tripa e foi desta para a melhor – dizem que era um cheiro que não se aguentava à sua beira. e não era falta de banho. que o jaquim cangalheiro nisso não falha. respeita os finados e a profissão. é muito melhor que o pai – estava todo apanhado por dentro com um malezinho – mas não. todos temos nome e neste filme até os artistas têm nome. as legendas passam levando nomes aparatosos. amorosos. apaixonados. percebe-se tudo pelos rostos e na forma como andam sempre para a frente – os gestos tão desenhados. só gente apaixonada sabe dizer tanto sem abrir a boca. ou então é o mundo que está em silêncio e já todos assim falam. fazendo desenhos no ar – os corações suspiram e quando tudo parece perdido aparece o artista a ocupar a tela de lés a lés. não se vê branco. nenhum pedaço vazio de tela. só há artista – é um momentos solene. dobra-se o silêncio em dois. tudo indica que desta vez só o som é capaz de resolver tudo o que salta dos olhos. vai ter de falar. os segundos parecem horas e os olhos cada vez mais perto da plateia. estão enormes. todo o cinema é agora aqueles olhos. já não há espaço nem para dizer um olá – sem mexer um único músculo facial. agarra a apaixonada pela cintura e. sem que o espanto pudesse surpreender os olhos arregalados da pobre rapariga. prega-lhe um beijo. daqueles que sela o silêncio para sempre – depois. sem que o tempo tenha tempo para continuar. a vida aparece: the end – há gestos que se repetem. os corpos contorcem-se como se fossem amor. queriam mais. queria o som da voz a dizer: amo-te. amo-te para sempre. até que a morte nos separe – acabou – só os olhos disseram paixão. os olhos de um e de outro fecharam-se para sempre com o beijo – estou conformado. sempre foi assim. nos momentos mais belos os homens fecham os olhos e ficam em silêncio – depois. já com os corpos desenganados chegam as luzes. as lâmpadas ganham formas e a vida corre na esperança de encontrar um beijo que também a obrigue a fechar os olhos para sempre – saem os cegos. os coxos. os manetas e os loucos e todos aqueles que perdem a cabeça a cuidar de filmes onde os artistas mudos se repetem na vida sem tela. vida que consome o tempo presente dia após dia – ainda há lugares nas frisas com faces paradas. mas os rostos estão cada vez mais longe dos corpos – estou demasiado distante para entender o que as bocas dizem. mexem os lábios de uma forma descoordenada. os corpos vão para um lado e a voz fica ali sozinha à espera que algum corpo a queira ouvir – até queria ouvir. mas estou longe e não trouxe os ouvidos – é no cinema que gosto de passar despercebido – aqui nunca se fala