Havia luz no mundo: a luz era necessária para iluminar as minhas descobertas. Tanta fragilidade, tanta impermanência de ser nem gastava tanta luz assim... era mais é exagero do sol. Deus, nem conta pra essas coisas...
Havia folhas verdes, e folhas amarelas, caídas no chão preto... mortas como eu agora...
Havia limões amarelos enterrados na lama fina e fria do rego-d’água.
Havia o ir e vir de uma faca na pedra de amolar atravessada no cocho do rego-d'água.
Havia uma laje limenta que servia de casa para uma baita gia comedora de pintinhos.
Havia marimbondos-tatu buscando barro do rego-d’água para fazer sua casa no pau cascorento da laranjeira morrente.
Havia a poeira deixada no trieiro por alguém que passou a galope. Eu ficava besta, vendo a poeira dissipar-se contra a luz rasante do sol.
Havia o cheiro místico das bolas de fiado, cheiro falador de tempos de antanho...
Havia um mundo morrendo... e havia um mundo nascendo novinho, novinho... e me diziam que isto era normal, "donde vem tanta preguntação, menino?"
Havia...havia... e havia... e eu não podia fazer nada, pois simplesmente havia, e havia as coisas: o sabão azangado de olho ruim, os urubus estraçalhando bezerrinho novo, que judiação... as juritis, as arapucas que eu ajudava a armar, o tatu escapando no matagal, o pacu gordo pego no jequi amarrado logo acima da aguada do gado, lá no Paranaíba, a sucuri entrando nas lagoas da vazante... cuidado! Havia ainda os negros-d'água... havia... havia... e havia... e eu não podia fazer nada, nada...
... E, contudo, a água clara do rego corria para aonde eu mais me descuidava: corria para o passado, quem é que não sabe que a nascente é que é o futuro, é de lá que vem a água nova... Mas eu sofria, pois eu contemplava a foz, o desague, e pensava: lá eu não vou não! Não quero sabe de me desandar feito caganeira de leite cru... Eu vou virar pó, eu sei... Só queria que isto fosse um segredo para agora, para não arreliar com os meus olhos meninos, ocupados na descoberta do mundo.
Mas não tinha jeito, mãe já havia me mostrado a resseca da morte... tinha mais jeito não! Eu era, depois disso, um menino velho... já cansado do mundo novo, novinho em folha! Nunca mais me curei da visão que mãe me mostrou!
Ah, a descoberta do mundo é sem parar, é até hoje... e ninguém me contou!
[Penas do Desterro, 13 de junho de 2011]