Acordei nua sobre o chão de madeia morta e frágil, tão frágil que cada passo que pudesse dar poderia quebrá-la. Aqui estou, ainda sentada sobre a madeira que já podre me sustenta.
O silêncio abraça a escuridão que as memórias deixaram, cada grito que saiu da nossa boca dança no escuro. Os sorrisos arderam e deixaram as cinzas que ao meu lado jazem. Como é que conseguiu arder tudo? O tudo feito de tão pouco, de almas tão podres e desvalecidas?
Olho a parede de cimento que construímos entre nós a cada tick tack que o relógio sussurou na imensidão do amor cego e insconsciente, no orgulho já velho, duradouro e egoísta. Olho para parede com os olhos fixos nas palavras que nela a sangue permanecem, o sangue que todo este tempo angaríamos um do outro com cada ferida que conseguimos abrir e que deixámos por sarar. Mas o tempo não cura nada, muito menos tudo.
E quem me dera que te sentasses aqui ao meu lado uma última vez e que pudesses, com os teus olhos que sangraram o lamento, ver os bocados ardidos e um tanto esquecidos de nós espalhados pelo o chão sujo. Mas não tão sujo ou imundo quanto cada momento que deixámos passar, como cada palavra que dissemos e deviamos ter deixado por dizer. Essas deveríamos ter guardo, cruzar os dedos e esperar que, com alguma sorte, pudessemos também esquecer, as outras, as palavras que os nossos ouvidos sempre ansiaram ouvir, as que o coração criou mas que a boca enjaulou na raiva e no orgulho, essas ficaram em suspenso nos pensamentos um tanto baralhados como outro tanto esquecidos. Mas não se esquecem os bocados de felicidade que podíamos ter construído, mas que preferimos assustar, não se podem esquecer as armas que levantámos para matar, os tiros que disparámos de olhos fechados em direcção um ao outro e que quase sempre acertaram no peito desprotegido e vendido ao amor incondicional, não se esquecem as lágrimas derramadas no silêncio.
Após este mar de tristeza, hoje não, não consegui chorar. Nem mesmo ao rodar a cabeça e ver-nos no chão, ardidos, falecidos e abandonados por nós mesmos, ao ver os bocados esquecidos que vendemos um do outro.
E aqui, neste quarto escuro, sentada sobre o chão quebradiço, eu escrevo estas palavras que tu nunca irás ler. Escrevo-te já morta, já modesta de qualquer sentimento para além da dor, cheia do vazio que a esperança deixou quando me abandonou, que me deixa pesada e me leva ao fundo..
A esperança afastou-se de mim.
Ela está sentada no fundo do quarto, enconstada no canto, distante de mim e sem vontade de me abraçar. Mas eu também a repulsaria, a mandaria embora. Eu odeio-a tanto, odeio a esperança. Quero-a longe e que consigo deixe guardados os sonhos mentirosos de um dia melhor amanhã.
Porque, meu amor, não vão haver melhores dias, nem sol, nem flores, tudo isso queimámos, tudo isso abandonámos, de tudo isso fugimos para nos refugiarmo-nos no lamento e destruição, auto-destruição.
Por isso, não destruas esta carta, não a deixes arder porque, como tudo o resto, não a poderei salvar. Desta vez irei fugir, sim, mas não irei correr para a dor como corremos quando ainda erámos tão cegos, irei apenas à procura do sol, das flores, dos sorrisos, da felicidade.
Amor, tudo aquilo que destruímos!
LAURA JUSTINO