O homem olhou ternamente para a neta. Estava uma mocinha nos seus dez anos. De repente nuvem de tristeza cobriu-lhe a fronte. Em breve seria apenas uma lembrança naquela cabecinha. Olhou ao redor na tentativa de segurar com a força da mente o tempo que sentia escorrer naqueles espaços densos e cheios de vida. E se..., pensou e o pensamento lhe pareceu uma tolice. Corrigiu a posição dos dedos dela sobre a flauta doce e recomeçou: um; dois e a menina concluiu sem erro a escala completa de dó maior. Vovô! Posso descansar um pouco? Vá, depois a gente continua. Maria Eduarda saiu sem perceber que arrastara consigo um pedaço da nuvem que se instalara na sala. O pensamento voltou insistente como algo que precisasse desesperadamente criar forma, nascer, concretizar-se. E se ela escrevesse..., mas o que poderia uma garotinha de dez anos escrever para si mesma daqui a quarenta anos? Decerto ele não estaria vivo para saber, mas era uma maneira de ludibriar o tempo. Ela faria uma carta endereçada a si mesma e tal missiva seria guardada. Após quarenta anos a mãe, o pai ou qualquer outra pessoa lhe entregaria a carta. Um intervalo de quarenta anos condensado num instante de vida. Idéia absurda, surreal, mas não queria deixá-lo quieto. Assim que Maria Eduarda voltou ouviu a pergunta ficando um pouco desnorteada com a estranha idéia do avô.
—Vamos brincar com o tempo? Pegue aquela caneta. Você vai escrever uma carta.
—Uma carta? Para quem? Não sou muito boa em redação.
—Não tem problema porque será uma carta para você mesma. Depois que você escrever vou selar e guardar com sete capas.
—Sete capas o que é isso?
—É uma força de expressão. Quero dizer que será um segredo. Ninguém poderá saber. Só depois de quarenta anos. No dia que você completar cinqüenta anos receberá a carta de volta e poderá rir do tempo.
—De onde o senhor tirou essa idéia?
—Na verdade essa idéia surgiu quando fui visitar uma velha conhecida de minha mãe. O nome dela também era Maria. Ela ajudou muito a gente em Águas Compridas, dividia o pão, matou muitas vezes a minha fome e a de meus irmãos. Assim que chegamos pra morar ali eu cometi um erro gravíssimo. Comecei a furtar as garrafas que o marido dela tinha no quintal. Furtava pra vender e comprar gibis ou ir para o cinema. Um dia Dona Maria descobriu. Fez um trato comigo: Prometi nunca mais furtar nada de alguém, em troca ela não contaria para minha mãe. Cresci, estudei, me tornei oficial da polícia, sai de Águas Compridas, mamãe morreu, mas Dona Maria continua viva, arrodeada de netos e bisnetos. Depois que sai de lá ela nunca mais me viu nem e nunca me verá. O glaucoma tirou-lhe a visão. Então um dia fui visitá-la. Ela quase morre de alegria quando reconheceu a minha voz. Antes de deixar que ela me tocasse o rosto perguntei se ela lembrava como eu era. Era claro que ela lembrava. Na mente dela eu continuava aquele menino magrinho, de cabelo ondulado, olhar esperto, que gostava de desenhar com carvão nas calçadas das casas. Quando as mãos dela acariciaram meu rosto ficaram inundadas de lágrimas que não consegui segurar. Então me pude ver mandando uma mensagem para mim mesmo.
—Qual foi a mensagem? Perguntou Maria Eduarda.
—Quando você receber sua própria carta saberá qual foi a mensagem.
—Mas se eu morrer antes dos cinqüenta?
—A carta será aberta e o tempo já não existirá.
E assim Maria Eduarda fez naquele dia a carta mais longa de sua vida.