O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas
o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas
enquanto lá fora
o sol escaldava
Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família
e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:
quase se partia
Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio
e
negro
no poço
negro
que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa
o que
circulava
no quintal da casa
O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro
e ali se deitava:
uma nesga dágua
um susto no chão
fragmento talvez
de água primeira
água brasileira
Era também açúcar
o silêncio
dentro do depósito
(na quitanda
de tarde)
o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro
energia solar
que vendíamos
aos quilos
Que rumor era
esse? barulho
que de tão oculto
só o olfato
o escuta?
que silêncio
era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto?
(na usina)
alarido
das tardes
das manhãs
agora em tumulto
dentro do açúcar
um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.
Ferreira Gullar, poeta brasileiro, In: Muitas Vozes, Ed. José Olympio.
Imagem: João de Almeida Photography