Um cheiro de charuto permeava o ambiente.
Um cheiro doce de cachaça, no canto do balcão, um vidro que girava e dentro dele deliciosas balas, de sabores, hoje, indecifráveis..., mas doces. “Algo penetrante que ia até vísceras”. Sem contar com um chão vagamente bordado pelas tampas dos refrigerantes. Aquilo tinha um perfume, porque por dentro da tampa havia uma suave camada de cortiça de inesquecível perfume. E eu as pegava e cheirava... Coisa de criança.
Lembro-me bem, haviam tranças de alho caindo do teto sobre o balcão, cebolas brancas e roxas, prateleiras decoradas por poeira e distraídas aranhas... Robustas mortadelas onde as moscas faziam um zumbido, mas de infecção intestinal ninguém nunca morreu. Uma corda pendurada com toucinho de porco, branquinho... Carne de sol, charque... Cachaças... Claro, que deviam ter vários nomes... Ali havia de tudo: balaios cheios de batata-doce, inhames, fruta-pão, jerimum, avoador (um peixe seco que nordestino descobriu para não morrer de fome). Festa no olhar... Poesia na minha inocência...
Um ambiente perfumado por álcool e conversas tantas de homens, de bêbados e também de senhoras e crianças... Entrar ali... Era algo como fazer uma viagem para um tempo que eu desconhecia, algo como hoje posso ler em sépia, que eu nem sabia da existência. Era um presente, um presente vivo da minha infância e me causava uma sensação de velhas fotografias. Um espaço tão vivo, tão autêntico, mas ali tinha algo de nostalgia, que na minha inocência não conseguia tocar. Um abstrato sentimento invadia a minha alma e aquele espaço. Por mim passavam sensações de prazer e medo.
Prazer pela diversidade das informações olfativas: papeis de balas pelo chão, pirulitos e alfenins e vez por outra algum distraído deixava alguma bala cair. Guloseima que eu apanhava calada e punha nos bolsos dos vestidinhos florais e saía para degustar.
Medo por olhar aqueles homens com falas enroladas, vestidos como quem vem da lida, cuspindo pelo chão em total desrespeito que é cuspir a casa de alguém – pensava. E eu os olhava e pensava na falta de higiene, cuspir assim ao pé do balcão... Palitos de fósforos pelo chão, como que decorando o arsenal. Vez por outra parava fixa, olhando para algum deles e já minha mãe me apertava o braço num código todo nosso, pedindo que eu desviasse o olhar.
Fumaças vindas dos charutos e eu com a intimidade que tinha com a dona da mercearia (velha amiga da minha mãe: D. Lenira. Ela tinha até um belo nome, difícil era digerir sem rir o nome do seu marido – como alguém poderia se chamar Lenira e ter um marido chamado Zé Buchudo?) pedia-lhe em segredo que guardasse para mim as vazias e perfumadas caixas de charuto, porque com elas eu faria caminhas para as bonecas. Não me furto a falar que bom mesmo era inalar o cheiro dos charutos que ficava impregnado nas caixas (hummmm...): iguaria de bêbado, pensava eu – aquela sensação de folha seca nas narinas, tabaco envelhecido, não sei definir. Hoje, acho que, por osmose, eu “cheirava charuto”, sem fumar. No chão, lembro-me ainda, feito do próprio tijolo branco que não havia como ser branco, de tanto que os bêbados cuspiam ou pisavam em dias de chuva ou qualquer estação...
Duas portas largas: sendo uma lateral, davam àquele espaço uma sensação de alma, algo quase palpável. Ao centro, um cesto, um antigo balaio coberto com um pano de linho branco, de onde saía um perfumado cheiro de pão fresco, alguns doces, um pão doce que não existe mais, com pedacinhos de côco e baunilha por cima, faziam daquele pão um manjar e uma deliciosa crosta tostada o decorava.
A isso minha mãe chamava de mercearia e eu chamava de festa.
Infelizmente, hoje, não vem à minha memória a música principal, mas sei que todas as vezes que ali entrei (com minha mãe ou meu pai) para fazer as compras, ouvia Nélson Gonçalves. Parecia que o dono da loja gostava apenas de uma música.
Hoje sei que a trilha sonora do ambiente era Nelson Gonçalves. Aqui, bem no final do texto, lembrei-me da música, que era “A flor do meu bairro”.
Talvez seja isso, aquela voz que me causa, até hoje, a memória viva dos doces e dos charutos. Havia pensamentos que me incomodavam: de onde viriam aqueles homens? Por que bebiam? Que prazer teria beber com euforia e gozo um copo de cachaça que eu a julgava amarga? - Mas hoje sei que é doce. O doce que aquelas vidas consolava, seus tédios aplacava. Para entender da vida, é preciso viver.
É preciso inalar não só o cheiro dos charutos, mas também sorvê-la e comer com a boca da emoção o sentido da vida. Degustar o amargo que há nos “incompreensíveis doces”, doces manjares que a dor dos que ali permaneciam a beber e cuspir as mágoas, etílicas mágoas...
São fugitivas as lembranças, são vivas na minha história. E posso sentir com uma alegria de mulher que não se perdeu da menina.
Um tempo lindo, um mágico tempo onde até os vícios disseram poesia.
(Ednar Andrade).