Gê Muniz
SETECENTAS LÉGUAS
Setecentas léguas segui caminho
Corri, parei, andei, voei, rastejei...
Por terra, mata, rocha e imensidão
Faustoso filme de sortidos cenários
De poder, fraqueza, nobreza e miséria
Chuva e corredeira, poeira e barreira
Tortuosidade, feiúra, beleza e exatidão...
Viajei ileso por tantas sonoras doideiras
De algumas mulheres abundadas de paixão...
Chorei por excêntricos gestos desumanos
E ri-me a valer junto a uns poucos homens bons...
Acariciei crianças sujas e medradas
Possuídas pelo terror das coisas da cidade
Como quando um raio risca o céu em descarrego
Vaguei em longas e perdidas noites de escuridão
Deparei com raparigas, donzelas, ditosas e perdidas
Dentro delas, natureza em fúria e humanidade
Inocência, virtude, malandragem e penúria...
Por mais setecentas léguas percorri jornada
De carona, a pé, no lombo da burrada
Luzes em postes, fumaça em asfalto
Casebres de tapera, bonitos edifícios altos
Asseio e sujidade, delícia e podridão
Continuavam, à minha revelia, sucedendo-se
Viagem estranha dentro e fora do coração
Povoados sucumbindo e cidades nascendo
Moleques roubando, trabalhando e estudando
Eles, de destinos traçados, apenas sonhavam...
Dormi em rede. Também em cama e chão
Antes do sono alguns oravam, outros gemiam
Uns em silêncio sofriam, outros só padeciam...
Acordava em dias gelados e mornos, em manhãs candentes
Nuns ajudava, noutros atrapalhava, beijava e brigava
Ilusões companheiras, amadas dedicadas ou ausentes
Trajeto de alegrias e desventuras, prazer e mágoas
Pujança da vida em desgraças afortunadas
Hoje preparo valise, corpo, alma e humor
Para as próximas setecentas léguas
Nunca saberei onde a trilha dá cabo
Nem demarquei seu confuso início...
Pois se esta velha estrada dá voltas
Não reconheço nem o que é recomeço
Pois o tempo sempre adultera a paisagem...