Numa tarde solarenga e calorenta, desloquei-me, pessoalmente, à Feira do livro.
Enfileirei-me por lá, atrás de gente de toda a espécie, heterosexuais pais e avós atarefados com carrinhos de bebés chorões, casais de homosexuais masculinos e femininos, orgulhosos das liberdades recém-adquiridas, pares de namorados ocupados em namorar, grupos de pessoas idosas contentes por terem companhia durante algumas horas e alguns, poucos, jovens carregados com mochilas semi-vazias, agarrados a telemóveis com mil e uma funcionalidades, soltando gargalhadas sonoras e despropositadas.
Circulava-se em todos os sentidos numa procissão caótica e contemplavam-se os pavilhões repletos de livros com desinteresse e com a sobranceria de quem foi ali para lanchar.
Sem cartões de crédito e sem dinheiro nos bolsos, o meu olhar vagueava, displicente, pelas capas de alguns volumes mais ou menos interessantes, adiando, uma vez mais, a altura favorável para os comprar.
Eis senão quando o meu olhar já estonteado pela confusão deparou com o "Escritor", a figura viva mais conceituada desta nossa praça literária. Sentado a uma mesa, caneta na mão e chapéu de sol escancarado, ali estava, tão perto, mesmo ao alcance da minha voz, se eu quisesse, bastar-me-ia chamá-lo... Procurei uma sombra favorável e dediquei-me à comtemplação.
Perto dele, alinhavam-se dezenas de pessoas díspares que cumpriam aquele ritual mágico de pedir um autógrafo no livro recém adquirido, para si ou para algum familiar, símbolo máximo de estoicismo e paradigma do fazer bem, de ser um leitor competente que até sabe quem é o escritor e lá vai lendo a já extensa obra.
Uma melancolia súbita envolveu-me da cabeça aos pés. Um arrepio de repugnância solidificou-se em mim. Não sei se foi a atitude gananciosa dos fãs ali especados como numa linha de montagem, ou se foi o olhar triste e sofrido do "Escritor", bobo contratado pela indústria livreira, assoberbado em cumprir o seu papel de "Lenda viva da Literatura Portuguesa".
Entristeceram-me as rugas de cansaço em volta dos seus olhos azuis. Senti a solidão. Compreendi a necessidade de fugir, de acabar com aquele penoso sorriso de circunstância a todos os presentes desconhecidos e extensível até aos ausentes também. Vi, distintamente, as barras da gaiola dourada em que a sua própria escrita o enclausurou. Lamentei-o profundamente e afastei-me por não o poder salvar.
Incipit...