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Encaixe

 
Falta-nos a luz branca das coisas novas. Falta-nos o cheiro da tinta fresca, e o calor da lareira no dia de chuva. Ou o leite levado à cama, os caprichos, as repreensões. O bom e o menos bom. Tudo nos faz falta, quando chega a altura da vida em que percebemos o que é a idade, o que significam os anos na realidade. O Tempo, que não existe. As rotações do universo, dos mundos que existem mas que não vemos, mas que sabemos que existem porque assim nos contaram. Chega a altura em que queremos voltar a tentar voar por cima da videira, a doce videira que nos alimentava os sonhos. Avizinha-se a hora da efémera tristeza, mas tão profunda, de constatar que não sonhamos mais, e que nunca mais poderemos voar por cima da videira, ou de qualquer trevo. As cabanas dos índios, o tempo as levou. As panelas de terra, o tempo as levou. Esse tempo que é um cubo mirrante e que flutua ao silêncio do abate, e da repressão de nós mesmos. Cubo onde cada um de nós se insere. Onde é o aperto da responsabilidade que fala mais alto que a necessidade. E eu pergunto-me porque não senti isto antes. Falta-nos a consciência cega, imune de malevolências, quando sabíamos que a mão era o caminho para as coisas, e mexíamos, torcíamos, esmagávamos todas as certezas, sem o medo da repreensão. Quando ser feliz era conseguir que o avião de papel planasse e ter um bolo para comer na volta para casa. Faz falta a simplicidade de ser apenas porque se é, pois somos complexos, por sermos aquilo que não somos e abominar-mos toda e qualquer hipocrisia. Chega a altura de vestir a farda de segunda-feira, dos dias, que são como os outros, mas que domesticaram. Chega a altura em que a farda, do uso, se apegou à pele, agrafou-se à alma, e confundimos o que somos, com aquilo que éramos, sem saber que não é o tempo o culpado, nem as segundas-feiras, nem os anos. Há quem não vista essa farda, e há quem a vista à força. São gente inconformada, em revolta não se sabe do quê, já que nem eles sabem do que fogem, mas sabem que sabem alguma verdade, e sentem dentro de si que o coração morre aos poucos. São pessoas confusas, sem rumo, ou alguém que os guie no caminho livre e mortal que escolheram. Chega a altura em que há corpos flamejantes que se destacam na multidão carregada do preto ou do branco, da uniformidade e da sentença de prisão perpétua a uma vida com preço de compra e empréstimo. Faz-nos falta um rio que nasça na sala e desagúe na mente, um coqueiro à porta do quarto, um cantar do pássaro das manhãs todos os dias da nossa vida. Mas só nos apercebemos dos milagres tarde demais, quando as lágrimas nos escorrem das unhas e por cima da cabeça se denote uma auréola suja. Quando já não somos nós, mas uma carcaça sem marca de algo que foi ou deixou de ser, de sangue burocrático e só, de olhos que mentem e despem o mundo com oportunismo, de mãos que batem na inocência e trazem o caminho do abismo. Porque chega a altura em que temos de ser adultos.

Paulo Coutinho

 
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super_prisma
 
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Enviado por Tópico
KássiaReis
Publicado: 06/05/2011 18:29  Atualizado: 06/05/2011 18:29
Da casa!
Usuário desde: 10/07/2010
Localidade: São Paulo -SP
Mensagens: 255
 Re: Encaixe
"Quando já não somos nós, mas uma carcaça sem marca de algo que foi ou deixou ser..." Dura realidade. Belíssimo texto! Parabéns!!


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/05/2011 22:23  Atualizado: 14/05/2011 22:23
 Re: Encaixe
...«Faz falta a simplicidade de ser apenas porque se é..»

Gostei imenso do seu texto!

Bjos
Verdana

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 16/06/2011 21:36  Atualizado: 16/06/2011 21:36
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11099
 Re: Encaixe
Paulo,
Apurada e pertinente prosa poética. Sempre é bom ler um texto que nosleva a reflectir.
Beijo
Nanda

Enviado por Tópico
MARNICA
Publicado: 18/11/2016 17:09  Atualizado: 18/11/2016 17:09
Novo Membro
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Mensagens: 10
 Re: Encaixe
Muito bom o seu texto... Eu, por mim, recuso-me a ser adulta. Sou uma criança mascarada de gente grande, com descuidos imperceptíveis a olho nu.

Calentina.

Fibetão.

Ninguém diria...