Havia um homem
cuja ocupação obscena
ofendias aos transeuntes
nauseabundos e incrédulos:
ele não fazia nada
senão esmurrar
em punhos nus
A Grande Muralha.
Dia depois de dia
noite depois de noite
desferia os golpes, tensos
furiosos, contra a pedra e o tijolo,
pele carne e osso
versus a rocha ígnea e ignota
sangrava, perdia lascas de si
mas jamais se interrompia:
Para isto nascera
era seu sumo propósito.
- O indivíduo regular
de estatura astral mediana
inconformado, vez em quando
protestava contra a moléstia
daquele que desconhecia o sofrimento.
O que esperava tal homem?
Onde queria chegar?
Se ninguém jamais se dera conta
de que socos cerrados, pouco a pouco
abriam caminho na parede ogra.
Investida após investida
as migalhas e pedacinhos iam se desprendendo,
pela tortura, lentamente um buraco nascia e crescia.
O homem jamais refletira
sabia que se um dia interrompesse
sua ode obtusa, enfim sentiria toda dor,
que até então não tivera chance
de adentrar-lhe à consciência,
sabia que estancar,
se importar com as opiniões
se preocupar com a falácia
o asco e o temor dos pedestres,
significaria seu fracasso,
a queda sem volta.
Tornara-se um imoral
diziam as bocas secas,
tornara-se um indigente
lamentavam os amolecidos.
Mas o homem golpeava
sem se cansar
sem se questionar:
ele tinha um sonho
a visão do outro lado.
Do outro lado,
do outro lado da lenda intransponível,
ele sabia:
lá haviam verdes prados
regatos claros e tépidos
toda fauna e toda flora intocadas
de suas primeiras infâncias.
Do outro lado,
lá haveria pesca e caça
lá crianças abusadas e safadas
correriam levantando as saias das tias,
lá haveria silêncio e ar puro
lá a terra seria virgem e digna de cultivo,
os pássaros cantariam em paz
os leões partilhariam as ceias com as hienas e cães do mato.
Uma vida humana
era ainda curta,
mas não demais.
Havia ainda tempo
tempo de perder pele músculos e nós de dedos,
arrancando pouco a pouco a solidez do muro,
que daria passagem ao destemido.
Havia ainda tempo
de conquistar o amor
a missão
a deidade do que vinha a ser...
- Anos e décadas correram,
a juventude voou
e o cinza dos pêlos e cabelos
pousou no semblante do herói,
que na extrema seriedade da batalha longeva
parecia sutilmente sorrir.
A dor
para ele,
nunca fora dor.
Cada murro
era um degrau
em direção de seu supremo,
eram inspirações
duma saga de coragem e prudência,
aventura não banal
de um que buscava o outro lado.
Tivesse ele parado por um instante,
todo horror faria-se visível aos próprios olhos,
o esforço se perderia.
Era um gênio imoral,
desprezava as consequências odiosas de sua tarefa
o isolamento,
a fome de explicação das testemunhas revoltadas
a ânsia de um término
por parte dos que rangiam dentes contra qualquer vigor.
Desprezava a tristeza
que causava exatamente aos que mais o amavam,
a compaixão e o ressentimento que despertava
entre os mais instruídos dos fracos e covardes.
...
Havia um homem
cuja obscena ocupação
finalmente rompeu o laço da prisão
abriu buraco largo o bastante à peregrinação.
Tão logo pisou sua terra prometida,
como o primeiro maratonista
ao entregar sua mensagem,
desabou para jamais levantar.
Caído, combalido
mas do outro lado da grande muralha.
Em seu leito de verdes aromas
confirmou a convicção de uma vida:
havia ainda mundo
havia ainda homem e guerreiro
havia ainda água corrente e futuro.
O longo trago
do horizonte transparente
primeiro e último no peito que cessava
trazia consigo, ao vento
o cheiro da esperança
o som quieto da vitória
da alegria imponderável.
- O buraco se alargou,
muitos fizeram a travessia
agora simplificada,
(muitos haviam tentado escalar a muralha
outros escavar por debaixo dela,
sempre sucumbindo
pelo oxigênio rarefeito das alturas
ou pelo ar ausente nas profundezas)
o homem e seu punho
foram esquecidos,
mas de seu corpo
decomposto sobre a relva
brotou uma árvore sem nome
que dava frutos inéditos,
-dali uma nova floresta cresceu
e com ela uma nova pátria
e sua nação.