Podemos perceber muito de finanças, saber o que o Pitágoras sabia, ter aberto muitas empresas de sucesso, ser barra em cálculo mental, mas não há ninguém, ninguém deste mundo que negoceie o tempo ao ponto de o fazer parar.
O tempo: esse cabrão que não espera por ninguém. Podes estar apertadinho da bexiga e erguer mãozinhas a deus para não te derreteres ali, mas sabes bem que o tempo é some e segue. Entre o passado e o presente a velocidade é tanta que nem tempo temos para morrer. É pegar no morto, chorá-lo, enterra-lo, cobri-lo, e está feito. Depois, que venha outro para o lugar deste.
A vida é assim, quando pensamos que vamos para comer, somos comidos. Ou então, haver muito sexo para alegria. Enfim, o sexo é o bastante para não pensarmos que a morte nos acena do meio da rua. Só não vê quem não quer.
O Bino não vive de planos, muito menos dos inclinados. Basta-lhe ter amigos e algumas amigas. A crise faz de nós seres mais ágeis e criativos. Caminhamos muito com a esperança de chegar a algum lado. Mas quase sempre acabamos no bar do Villas a beber esperança líquida até clarificar as ideias.
E foi numa dessas ocasiões que o Bino, farto de aguçar ilusões, passou a dedicar-se aos jogos de mesa, nomeadamente o póquer, onde, uma vitória podia-lhe valer dez almoços e assim salvar uns dias da miséria estomacal. Só que em cada lugar da mesa todos andam ao mesmo: ganhar. Ali não há espaço para engraçadinhos.
Quem tentar um piscar de olhos, ou meter uma carta por debaixo da mesa, está fora e arrisca-se a um murro nos olhos.
A sobrevivência é assim: ou jogas limpo ou cais na merda. Não há duas nem três. Frita-se os miolos ao mínimo derrape. O Bino conhece as regras. É dotado de uma inteligência paranormal que não passa por assar bifes com o pensamento. Não. A queda natural do Bino é a adivinhação. Um dom inexplicável que não conta a ninguém e nem tampouco sabe de onde vem. Sabe apenas que quando se senta na mesa para jogar, o seu instinto é mais forte que um extintor. Raramente perde e, por raramente perder, vem a desconfiança e vai-se o pleonasmo.
Os parceiros da mesa interrogam-se. Ninguém deste mundo tem tanto palpite acertado. Até que num dia, após ter depenado tudo e todos com um full de ases, apertaram-lhe as goelas quase ao máximo. Por azar, um deles era o Caga-Pó, saiídinho da prisa há meio mês, olho de vidro, pulseirinha electrónica, cicatriz na face...
É nestas alturas que o tempo pára, ainda que se tente dar corda aos sapatos. O Bino tentou a fuga pelas traseiras mas o matulão pôs o corpo na frente, sorrindo com a sua falta de dois dentes. Por milagre apareceu um ex-polícia a salvar-lhe a pele e a tirá-lo dali para fora com um puxão de roupa. Foi uma sorte o Bino ter saído dali com saúde, quanto mais vivo.
O Caga-Pó bem que queria dar-lhe uma coça, mas conteve-se, sabia que o risco era alto e preferiu dirigir-lhe umas ameaças para a próxima vez que o encontrasse. Já o Bino, agora de costas forradas, exibia uma ironia desastrosa, só para o deixar em águas. E foi-se embora dali, acompanhado por aquele que, dia após dia, se tornou amigo diário, o ex-polícia.
Claro que o dinheiro dá asas e, se a gente não tem um pouco de cautela, voa mesmo, sem nunca mais aterrar. O ex-polícia - que gostava de umas coisas esquisitas - um dia teve a belíssima ideia em levar o Bino para um bacanal, que aceitou, inclusive saboreou a palavra bacanal durante um certo tempo até lhe fazer água na boca. O ex-polícia tratou de ligar a um amigo que tinha uns amigos mais umas amigas de umas amigas, e a coisa ficou tratada para o fim-de-semana próximo, sendo a discrição a única exigência, uma vez que envolve gente da alta.
O Bino ficou em pulgas.
Logo ele, que tanto intuía, nunca na vida chegou a intuir uma coisa dessas, a não ser em sonhos. No dia da festa, aperaltou-se todo, passou a semana toda a fazer abdominais e a comer saladas e frutas para aumentar o seu endurance.
A horinhas partiram, pois sabem que nestas coisas do sexo, se nos atrasamos, outros passam a frente. É a chamada lei da vantagem. Portanto foram, desportivamente falando, a darem palha aos pensamentos e a suporem se no bacanal haveria mais loiras ou morenas. Quando chegaram à casa do Ramiro, a cena estava montada, o quarto semi escuro e, dentro dele, uma enorme cama redonda. Quando os dois amigos entraram, já os casais faziam trocas e baldrocas. Uma salada russa de amor, onde, neste caso, comer em excesso não faz mal à barriga.
O Bino, antes de começar as suas manobras, sentiu uma mãozinha ao de leve nas cascas. Olhou para ver quem era, via-se mal, mas via-se que sorria. Então aproximou mais os olhos, mais ainda, até ver nitidamente o que nunca foi capaz de adivinhar: um olho de vidro, pulseirinha electrónica, cicatriz na face… Nisto, a porta fechou-se!