Caiu o céu nesse dia, furibundo derramou sobre a terra toda a sua fúria em gotas grossas e em tal número que juntas corriam em cada rua como um rio imenso na pressa de atingir a foz. Sulcaram caminhos, enlamearam estradas, o caos estendia-se do Cazenga ao Porto, na Chicala desmoronavam as chapas, na Cuca vergava-se o velho Imbondeiro, no Benfica a fúria das águas arrastava os candongueiros que pintavam de azul o negro dos charcos.
Contrariado ao volante, em marcha lenta por valetas e picadas fazia o motor resfolegar no esforço de ultrapassar as lamas e os socalcos cavados pelas gotas insistentes. Transformadas em montanhas russas as estradas cavadas nas lamas punham me o sobrolho carregado competindo em fúria com o céu que explodia em mil raios por cima de mim.
Numa das prolongadas paragens nas filas intermináveis olho para o lado e observo dois meninos descalços, de singelo calção, um em tronco nu, outro com camisolinha cuja cor não percebia pelo meio do sujo da lama e de dias seguidos de utilização. Sentados na cornija da porta de um barraco, lado a lado, embevecidos olhavam um pacote de bolachas que parcimoniosamente abriam e bolacha a ti, bolacha a mim, dividiam com rigor e justiça alheios à tempestade e com olhar guloso sobre o parco pecúlio que amealharam sabe-se lá onde e como. De repente como se me pressentissem, olharam para mim e ficaram sérios, trocaram uns olhares entre eles sem dizerem nada, um deles levantou-se e acercou-se do meu vidro, pequenino, não tinha mais de seis ou sete anos, acto seguinte esticou o braço com a sua parte das bolachas, abri o vidro:
- Queres amigo? – Perguntou naquela voz que faz de cada criança um anjo. Respondi-lhe que não com a voz embargada pela emoção que me assaltou. A felicidade evidente naqueles olhos fizeram-me envergonhar da minha fúria. O outro acercou-se do amiguinho, meti a mão ao bolso e tirei os trocos que trazia, coisa pouca mas que a eles lhes garantiria o dia seguinte.
A fila recomeçou o seu lento arrastar por entre as lamas e árvores fustigadas, os meninos seguiam ao lado do carro aos saltos alegres e felizes gritando nas vozes fininhas uns decibéis acima das bátegas trinantes nas chapas:
- Amigo, amigo…
Seguia pensando na chuva benfazeja, na regeneração dos solos férteis e fecundos, as vozes dos meninos violinos na lama anunciando a aurora.