Fazia frio. Incomodavam-te as coisas. Ficaste quente. As coisas deixaram de te incomodar.
O que foi que aconteceu? Essa não é a tua questão, mas sabes que queres mais. Agora que estás quente, sentes-te com frio; agora que as coisas deixaram de te incomodar, passaram a incomodar-te (?). Estarás mesmo tu com frio? Incomodar-te-ão mesmo as coisas? Isso é uma incógnita, mas é assim que te sentes e sentes que precisas de te sentir assim: quente, com comodidade nas tuas certezas. (Mas será assim que tu te QUERES sentir?)
Não tarda, vês o teu caminho desabar; não tarda, vês um poço sem fundo, não tarda, estás numa luz indistinta, numa clausura existencial medonha; não tarda, choras. Não é para menos! Não há-de tardar muito, também, até que fiquem com pena de ti.
Não tarda, não foi nada.
(Mas custa a tardar, tem, até, tardado em tardar ultimamente. Não há-de tardar muito até chegar o dia em que quando tardar, já será tarde demais).
Que alegria, que êxtase, que realização: estás quente; ficarás quente. Para sempre! Sim! Oh, mas que universo de saídas! Que universo de alavancas que te erguem! Que universo de sensações inesquecíveis! Que universo de momentos perpetuados num oceano temporal! Vive, dá o teu melhor! Sobe, força, só mais um pouco! Estás mesmo a chegar!
Mas não chegas.
Sobre o fracasso, choras.
Já se faz tarde no Inverno da vida e há gelo na rua. Estás com frio outra vez e já é bem “Hora de cuspir palavras”, pensas tu. (…) Sim, estás a ficar mais quente mais uma vez! Isso mesmo, que maravilha! Que mina de ouro virgem! Que grata esta tua situação!
Nunca te soube tão bem um profundo escarro de palavras, confessa…
Sobe-me um arrepio súbito pelas costas. Preocupem-se, aqueçam-me, depressa! Rápido, que morro de hipotermia. Que ironia!
Preparem as mantinhas que o cobrador está com frio.
Rui Gomes